domingo, 28 de dezembro de 2008

Apocalipse

Procurei por ela nos meus textos, nos rascunhos, no blog, nas arquivos de word. Não encontrei. Pensei onde ela teria ido. O lugar dela era ali, cristalizada em contos, não a vagar pela realidade. Aquele tipo de mulher não poderia estar a solta por aí. Perigosa demais, mulher demais. Por isso que sempre a contive nos textos, frutos de mera imaginação. Mas de algum modo escapoliu, saiu, fugiu. Se libertou da prisão que lhe dei por lar. Sumiu. E demorou até que a achasse. Encontrei-na linda, perfeita, forte e como sempre desafiando-me. Olhou-me de frente, encarou. Não desviou. Ousada, me fitou. Ali no espelho, se revelou. A mulher ganhou vida, era a própria vida, nunca mera imaginação.

segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

Mentiras

Talvez quiséramos ser aqueles
Seres nobres e austeros
Acima do mal e repletos do bem


Mas não é assim
Somos seres humanos
Osso e carne

Para além da alma
Está o desejo
Antes do amor, se esconde a paixão

Não existe apenas sim ou não
Nuanças entre ambos estão
Talvez, precisão

Incoerência

Cortejo sua ausência.
Deleito-me na sua falta.
E vivo, sem você, o amor impossível de viver contigo.
Não preciso de você, pois tenho sua imagem, sua lembrança.
Isso me é suficiente para viver o platônico amor romântico que sempre desejei. Sempre tive.
Na inviabilidade da sua própria existência, o amor nasce.
Cresce na ausência, padece na liberdade da qual se alimenta.
Amor não existe.
O que existe é o desejo de amar.
Como não é possível, o amor é eterno.

MEMÓRIAS DE MIM

Sentei com minha amiga num restaurante de frutos do mar. Sentei-me e pedi aqueles croquetinhos de camarão com catupiry e a taça de vinho português. Começamos a conversar. Lembranças me vieram. Monopolizei o diálogo. Lembrei-na e lembrei-me do quanto fui danada. Sim, uma grande menina levada que fui e, não raro, sou. Lembrei que gostava de apertar o bumbum dos garçons, lembrei que numa situação perdi a aposta e ganhei R$45: tive que dançar sobre a mesa de um quiosque. Lembrei que num Reveillon fui a única das amigas que quis brincar de salada mista com apenas dois meninos, beijei os dois. Lembrei que me apaixonei pelos meninos mais inteligentes e rebeldes da faculdade. Sim, lembrei que naquela época não acreditava em amor. Percebi que não mudei lá grandes coisas. Lembrei que tinha medo de me tornar o que hoje sou: mulher, independente e solteira. Chorei. Chorei, pois foi a escolha que fiz. Não se pode ter tudo. Eu escolhi por mim e fiz o que a razão ordenou. Desprezei minha emoção. Sorri logo em seguida, pois amei e fui amada diversas vezes. E era assim como minha amiga casada - feliz, plena e realizada. Quis abraçar o mundo, não consegui. Apertei-lhe as mãos. Embreagada de lembranças, peguei o táxi. Fui para casa. Dormi nos braços de Cláudio, eterno meu amor.

Tijuca, RJ
Restaurante Umas e Ostras - 17/12/2023.

sábado, 29 de novembro de 2008

Obrigada

Obrigada porque você pôde me libertar
Quando eu quis fazer de você minha prisão
Obrigada pois com teu exemplo aprendi a ser mulher
E nos teus olhos enxerguei a plenitude e integridade humana do bem e do mal
Obrigada por que no teu corpo pude me deleitar
E mesmo não sendo o corpo mais desejado por mim
Foi o lugar seguro onde bem desejei estar
Obrigada por ser paciente, amigo e leal
Obrigada por ter estado aqui e ter passado por minha vida
E o que ficou agora é meu e nunca abrirei mão
O adeus se diz no silêncio da minha voz que não quis calar e você persistente e pacientemente ouviu
Abraços, carinhos e demais coisas
Que pareciam sonho foram realidades e por isso chegaram ao fim
Obrigada, adeus.
Não conseguia respirar
A voz não saía
A mão tremia
O suor escorria

Não sabia dizer
A alma pulsava
O coração latejava
O razão queria sucumbir
a emoção

O outono passava
O passado voltava
O inverno queria imperar
Nas decisões

Mas a verdade falava
O olhar revelara
O que nítido estava
Dentro dos corações

O tempo passava
Mas o amor não calava
O silêncio inundava
Cada oração

A verdade saía
O nervoso passava
As palavras faladas
Eram verdades de religião

domingo, 23 de novembro de 2008

Mayara

Agora sei o que você sentiu. Sei, namorada que ama. Sinto em mim a dor de ser Mayara, namorada de um Léo. Mais que isso sinto a dor de ser mulher-menina que ama com a alma e sem reservas. Hoje eu sei Mayara e por isso te peço perdão. Perdão porque sabendo sua história quis ser você. Mas explico que já não sabia ser eu. E não queria. Não queria ser a outra, quis ser Mayara. E hoje sou. Sou Mayara na dor, no amor e na espera. Espera que não tem fim. Mas sei, terá. Sou uma Mayara porque já fui muitas e ser mais uma não faz diferença. Serei todas até que por fim seja e assuma ser quem sou.
Domingo. Mais um domingo. Mas não é do domingo que quero falar. É do jornal que vou ler daqui a pouco. E daquilo que vou ler, que vai mexer comigo e me instigar. As notícias de sempre, semana após semana.
Talvez eu escreva um texto para tentar fazer algo, algo por mim. Pelo menos compartilhar e me livrar de parte desse sentimento. O sentimento de impotência ante as injustiças, o que é frustrante.
Discuti hoje com minhas amigas, Priscilla e Josimeri. Discutimos juntas injustiças, as medidas políticas, o posicionamento das entidades privadas, a propriedade privada e a participação do indivíduo em sua formação enquanto ser social.
Queria ser tão insensível quanto tentei mostrar ser, e achar tão natural quanto meu discurso tentou nos persuadir. Não queria me importar mais com isso. Queria ler o jornal e não entender o que está escrito nas linhas e entrelinhas. Ou queria entender, mas de um modo conformista que quando eu dissesse para mim mesma "o mundo é assim mesmo", eu desse de ombros e o meu estômago parasse de fervilhar. Queria achar o mundo normal e que existir pessoas sem lar e sem comida sobre a mesa é a coisa mais natural. E após a leitura levantar, pegar minha bolsa e fazer compras no shopping num domingo nublado. Queria que eu fosse assim. Queria não me sentir comovida e compelida a acreditar que algo precisa ser feito. E logo em seguida não queria me sentir tão pequena, incompetente porque não sei o que fazer.
Talvez precise de uma ideologia urgentemente. Qual ?

"Pois aquele garoto
Que ia mudar o mundo
Mudar o mundo
Agora assiste a tudo
Em cima do muro
Em cima do muro...

Meus heróis
Morreram de overdose
Meus inimigos
Estão no poder
Ideologia!
Eu quero uma prá viver
Ideologia!
Prá viver..."
(Ideologia - composição: Cazuza/ Roberto Frejat)

Quem sabe eu seja esse garoto que queria mudar o mundo. Pois realmente já quis e acreditei que o faria, e mesmo que não conseguisse morreria tentando. Talvez agora eu esteja caminhando para cima do muro.
Onde estão meus heróis? Quem são os meus heróis? E os teus? Quem são e onde estão?

O que tem sido feito para melhorar? Melhorar o quê!? Já te digo. Eu não preciso me esforçar para responder. Levanto e olho na janela: alguns problemas estão ali expostos na minha frente. A começar pelo Ciep Hélio Smith onde crianças na terceira série primária não sabem ler e escrever. A direita está o Batalhão da Maré que suscita a pergunta: "quem são mesmo os criminosos?". Se adentrar ruas e becos verei armamentos pesados de guerra, e com algum azar o uso dos tais. Sem falar na venda explícita de entorpecentes. No meio do caminho verei bêbados, drogados e muita criança com os pés no chão. E queira você acreditar ou não, são pessoas de bem. E ainda mais, pense, são em parte esses bêbados e drogados que educam as crianças da terceira série do Ciep que não lêem e não escrevem.
Quem são os culpados? O governo? Os pais? As professoras? A polícia? Os traficantes? As crianças? Eu e você? Importa quem sejam os culpados? O importante é solução. Medidas concretas e eficazes.

Não quero que me falem das Ongs e dos Projetos ou das Ações de Cidadania e Movimentos Sociais. Quero que me falem de resultados. E que me convençam que há realmente um porque acreditar em mudança. Façam isso, por favor. Quero ver meu ceticismo derrubado. Quero não ter razão e estar completamente errada quando me esforço para aceitar a vida como ela é.
A verdade é que não vou me conformar, mas também não aceito ficar descrevendo os problemas e apontando culpados ou ouvindo Cazuza, Rappa e Charlie Brown Jr e não fazer nada.

"É assim que é...Eu vou mudar, tudo que não me convém
Hoje tenho tudo que podia querer mas,
Dinheiro não é tudo tenho muito a fazer.
Quem não respeita o pai, não respeita ninguém
Porque um homem de verdade vai ser pai também,
Ame o seu pai, mesmo se ele for um porco capitalista."
(Não uso sapato - Charlie Brown Jr _ Composição: Chorão, Marcão, Champignon e Pelado)

Tinha desistido de falar desse tema, mas não é assim que se decide sobre o que escrever. Favela, injustiças e todo esse blá blá blá são repetidos em jornais, blogs e TV todos os dias. Programas de humor, novelas e seriados na mídia abordam esses temas e os tornam cada vez mais acessíveis e menos levados a sério. A abordagem massiva desses temas sugere que é realmente normal o que acontece. "Olha lá, na TV aparece igual acontece com nós aqui!"
Verdade é que o assunto está na moda. Assim como é chique e confere status participar de algum projeto social em alguma favela ou morrinho por aí.
Não me importo que isso aconteça, mas concomitantemente é necessário fazer e executar soluções. As medidas concretas das quais falei acima. E nisso surge a mais importante razão de ser deste texto. Eu não tenho a resposta. E sei que sozinha não vou conseguir. Mas se eu conseguir fazer com que uma parte de quem está lendo pense a respeito. Talvez não hoje, mas em algum momento a solução surgirá. Não de mim, não de você, mas da gente. Sozinho ninguém faz nada.
Pode ser que o que você esteja lendo seja em parte aquilo que você pensa, e te incomoda também. Principalmente o fato de não ter em mãos um livro que tenha as respostas prontas para os problemas do mundo. Mas se estamos conscientes que o modo como está não nos satisfaz e que não temos a solução ainda, já temos a metade do caminho para encontrá-la.

Bom domingo a todos.

Karla Rodrigues Gregório

sexta-feira, 21 de novembro de 2008

Eu

O mundo não dá susto. O mundo do lado de fora é simples. Dentro, aqui dentro que é complicado. Aqui fora posso mover as coisas, algumas até posso entender. Mas aqui dentro é tudo misturado. Não tem como pegar algo e mudar de lugar, não facilmente. Dentro é confusão. Fora o caos se tornou cosmo. Dentro mutação, algo que não é mais e que ainda não é, mas foi e será algo que não sei o que é. O mundo é simples e as pessoas são boas. Eu que não sou boa. Ou sou boa como todos são, sendo bons e maus. E tenho dificuldade de assumir isso. O que sou é difícil ser, pois sou isso mas não era, ou não sabia que era. Então agora tenho dificuldade para ser. Mas estou tentando e me esforçando ser quem sou.
As pessoas não são perigosas. Não por si. Nada podem me fazer, a não ser que eu permita. Sou meu castelo forte e sei me proteger. Mas vejo perigo as vezes na fumaça que está no céu, como se fosse um incêndio. Na verdade era a chaminé da casa onde estava sendo feito um calderão de sopa deliciosa.
A cabeça prega peças. Os olhos e as emoções também. Pecado ler onde não há nada escrito. Reagir a uma ação não tomada. Vingar um sentimento não ferido. Matar sem ter motivo.
Aprender é necessário. É chato quando fazemos uso de alguém, que também nos usa. Mas sequer sabemos até quando. As pessoas ensinam sem querer às vezes. Mas chegará o dia em que vou ir embora porque já aprendi tudo que tinha para aprender com ela. Não gosto de partir. Na verdade gosto de partir, mas não gosto quando tenho vontade de ficar. Mas o meu tempo nem sempre é o tempo. Tenho amigos que estão distante porque nosso tempo junto acabou, nosso elo, o ponto em comum. É um gostar diferente. Gostar na distância. Gostar da lembraça, lembraça de algo bom que ficou para trás.
É pecado forçar a barra para estar junto quando o tempo acabou. Violentar a vida, a minha vida, quando algo mais está no horizonte me aguardando e tento segurar com toda força a brisa do passado. Forçando me limitar quando o horizonte é tão extenso e tão lindo e tão cheio de expectativas e boas surpresas. Isso é assombroso e belo.
As vezes acho isso. Isso que eu disse. Reluto muito a deixar para trás aquilo que precisa ser deixado. Em relação a tudo: pensamentos, ideais, pessoas, amigos, amores. Uma vez uma amiga de alojamento do Seminário se mudava para um outro Estado, e eu fiquei muito triste por isso. Ela me disse: Karlinha, a vida é um grande barco que para que pessoas novas entrem algumas antigas precisam descer.
Esse fluxo é natural, achei ingrato isso, mas faz sentido e é bom. Entendo. É bom. Tento me convencer disso. Tento aceitar.
A vida é tão rica e tão cheia de... vida. Pessoas, sonhos e realizações. E mais pessoas, amores, amantes, lábios e desejos num concatenado de confusões. "A vida é real e de viés..." diz Caetano Veloso. Gosto de uma pessoa, já gostei de outra e já me apaixonei diversas vezes. Desejo uma outra, sou intrigada por uma que gosta de mim e não sei o que fazer. Mas o que sei é que não posso simplesmente fugir dessa realidade. Dessa confusão de coisas que estão aí. Não vivi ainda nenhum seriado de Nelson Rodrigues. Nunca li Jorge Amado, mas acredito que também não vivo qualquer de seus romances. Mas sei que muito do que há em todas as pessoas também há em mim. Desejos proibidos, vontades estranhas e esquisitas, sonhos reprimidos, sonhos desajeitados. Sou muito humana e me dar conta disso é como se eu acabasse de descobrir que existo. E que estou num mundo com bilhões de pessoas que são como eu, e não são menos que eu, não são melhores que eu. São eus diferentes de mim, mas da mesma essência, suscetíveis às mesmas vicissitudes que eu. Cotidiano, rotina, mesmice, cansaço, sonhos, pesadelos, chulé, arroto, caspa, lágrima, sorriso, orgasmo, cachaça... Sou humana, muito humana, tão humana e tão mulher. E vivo aqui nesse planeta e falo esse idioma e tenho os traços do rosto como o são e uma cabeça cheia de coisas. E isso faz com que eu me sinta a pessoa mais interessante do mundo. Faz-me sentir plena e realizada num planeta numa via láctea num universo grande, grande, muito grande.
Adoro viver e ter 25 anos e descobrir que em 25 anos serei idosa. E ter expectativa de quem serei eu daqui a 25 anos. O que terei feito? Como terei vivido? O que terei conquistado? O que estarei conquistando e construindo? Qual será o meu legado para este mundo? O que deixarei para os outros eus que virão depois de mim? Isso me joga um senso de responsabilidadeb por mim e pelos demais. O que não diminui o prazer de estar aqui. Não diminui.
Sou viva e estou aqui.
Mudo por dentro. Mudo por fora. Não tenho limites. Não há limites no mundo para todo ser humano. O segredo é descobrir isso. E isso eu sei desde pequena. Tinha esquecido, mas relembrei. Posso tudo e o impossível não existe. A vida me diz isso desde sempre e há muito tempo. E com isso acredito timidamente que sou feliz.
Propositadamente colocava a mão na tomada. Levava choques fortes mas suportáveis. Gostava de colocar a mão lá embora já soubesse o que lhe iria acontecer: mais um choque. Aquilo era sofrimento. Sofrimento controlado, procurado e provocado. Era susto e expectativa do choque que procurava. Sabia como iria acabar, poderia ser diferente, mas não conseguia fazer de outro modo. Ligava a eletricidade da velha casa e começava a colocar os dedos em todas as tomadas. Revezava para saber qual era o fio neutro e aquele com corrente. Adorava a expectativa da dor e do sofrimento. Vivia na mesma casa desde pequeno, onde sofrera ao ver seus pais brigando, quando ainda era de colo. Sofreu quando se separavam e por fim sofreu quando viu seu pai esfaquiar sua mãe e fugir. Nisso já era adolescente. Cresceu na mesma casa. Hoje é pedreiro e alcólatra. Sua vida foi marcada pela dor e o sofrimento. Não consegue nutrir qualquer relacionamento. Seus amigos são os que com ele se aglomeram no chão do bar. Sua vida é encontro com o sofrer, o que o faz sentir-se vivo. Dor é o sentimento que traz para ele a lembrança da família.Então sofre e busca esse sofrimento, levando choque pelo corpo. Seu modo de se realizar enquanto pessoa e de existir.

domingo, 16 de novembro de 2008

Avesso do conto

Estou cheia de dor de cabeça. Ressaca de duas latas de Boêmia e um copo de Skol. Saí com meus amigos, fomos para Laranjeiras. Não bebo muito, então, o pouco que bebo, eventualmente, me deixa cambaleada. Hoje é domingo e não tive saco para concluir a leitura dos relatórios da reunião de amanhã. A louça e o jantar ficaram por conta de Cláudio. Amanhã a diarista não virá, então o banheiro ficará por conta dele também.
Vou tomar uma aspirina e descansar. Cheguei em casa às cinco da manhã, só dormi até onze. Estou lendo um livro que devolvo a biblioteca em poucos dias. Minha cabeça está revirada, mas a leitura é tão interessante que não consegui prescindir dela. O livro fala do fracasso do feminismo dos anos sessenta. As mulheres pediram emancipação, queimaram sutiãs mas não conseguiram em grande maioria lidar com essa "liberdade". Ainda são menininhas dependentes emocionalmente de seus cônjuges embora passem por fora ar de autonomia e independência. Acho que sou assim, também. Dependo de Cláudio para que esse apartamento fique limpo quando a empregada não vem, para massagear minhas costas depois de um estressante dia de trabalho e dependo dele - mas não somente dele - para aliviar a tensão física através de danças tântricas de amor. Minha emoção é meu esposo que cuida também. Não raro é contido e impassível em meus momentos de exasperação. Acredito que sofro do que o livro chama Complexo de Cinderela. Sou uma Cinderela que encontrou seu sapo encantado, Cláudio, meu amado marido.

sábado, 15 de novembro de 2008

Luna

Se eu não tiver uma vida própria
Não terei o que doar
Se eu não tiver uma própria vida
Perguntas não poderei responder
Se eu não tiver uma vida minha
Não saberei o outro amar
Se não tiver minha própria vida
Não terei meios de em ti me encontrar

Se eu não me possuir por completo
e minha própria vida eu mesma dirigir
Não saberei quando estarei alguém seguindo,
Sendo eu mesma ou a vida de outrem a perseguir

Se eu não construir meu próprio caminho
Nunca conseguirei um par alcançar
Estarei perdida sem caminho
Sem rumo
Sem estrada
Sem lar

Se eu não for a coisa mais importante no mundo
Nada mais terá valor
Somente a partir de si um sujeito configura o mundo
E o ordena sempre a seu favor

Estou em primeiro lugar
Em tudo da vida, no mundo sem par
Sou eu por mim, não por você
Serei mais que tudo que possa ser

Não posso me esconder na vida alheia
Ou no meu próximo me ocultar
Sou a única responsável pela minha vida
Isso é um prazer, prazer de aqui estar

Sigo segura minha vida
Confiante do caminho que eu escolhi
Sou arquiteta do mundo
Construí o meu futuro, presente que seguí

Sou eu, sou única, sem arrimo fora de mim
Sou tudo que preciso no mundo
Por isso sou alguém para o mundo
Por isso sou Luna para ti
Mesmo sem motivo para escrever
Sem ter o que falar
Não entendo o que eu sinto; eu vou dizer
Aquilo que me faz parar

Quando olho, não quero ver
Mesmo sem saber, não dá para acreditar
É verdade o que sinto por você
Ou será mera ilusão criada para sonhar?

De verdade quero este amor? Prefiro eu que ele venha acabar?
É difícil isso saber. Muito difícil interpretar

Vou continuar a sofrer? Por que a ser feliz não quero me habituar
Luto com o que sinto e ainda luto por você
Luto por algo que não imagino o que será

Minha voz, meu corpo, minha alma querem você
Minha mente, de ti se separar
Como pode esta luta? Quem irá vencer?
Estarei por perto ou irei me afastar?

Mulher que sou, maluca que sei
Amo-te e não quero essa realidade vivenciar
Segura estou longe de ti, não quero a isso ceder
Prefiro a segura solidão à incerteza de amar

Não findo por aqui, há mais o que dizer
Não encontro palavras certas para dissertar
Faço perguntas às quais não posso responder...
Cheguei à conclusão, opto por continuar.

Alice

Alice se casaria em dois dias. Esposa de um político conservador de direita em sua cidadezinha seria. Teria como missão de vida ser exemplo de mulher, mãe e esposa. Seria mais mãe e esposa que mulher, ela já sabia.
Ela estava ali na varanda de casa a lembrar de sua vida e história... Logo ela que odiava os meninos, logo ela que jamais se casaria, logo ela que subia em árvore, usava boné e tomava banho de chuva. Ela achava tudo muito irônico. Ela que adorava a rebeldia, adorava saber o certo somente para fazer o errado. Ela mesma que inocentemente brincava com a capacidade das pessoas ironizando, sendo irreverente, ambígua e controversa.
Por um longo momento divagou. Lembrou-se do período em que estudou fora de sua cidade, quando viveu no alojamento da Escola Secundária. Lembrou-se dos dias que saia sozinha pelas ruas a falar com as pessoas mais esquisitas, contemplando-os pela ótica da normalidade, curiosa pelo outro, pelo diferente, curiosa pela diversidade da vida e dos seres. Também lembrou do primeiro porre de vinho. E da vez em que tomou uma dose de cachaça num botequim com os amigos. Relembrou-se do dia em que dormiu no alojamento dos rapazes para transgredir as normas, nada mais.
Sim, lembrou com alegria e talvez tímida nostalgia. Recordou esse tempo que ficou para trás. Alice não era mais assim. È verdade que era, mas abria mão de muito disso para uma nova etapa da sua vida, não menos digna de louvor. Suas travessuras ficavam para trás, parte dela já estava muito atrás, sendo tangível pelo fio da lembrança apenas. Ela amava o novo desafio, sabia o seu papel ao lado de seu futuro esposo, também conhecia o papel em sua própria vida, e saberia viver a nova canção em uníssono. Certa estava seguindo sua vocação, apoiada pela sua emoção e por sua razão. Entendia que a partir dali estava se tornando verdadeiramente mulher.

Depoimento - Revista Femme Fatale

Eu briguei com ele, pois queria liberdade. Queria independência. Queria fazer minha própria vontade. Briguei, esbravejei, me enfureci. Passaram-se dois anos desde este dia. E não faço nada senão obedecer-lhe. Não faço nada senão agradar-lhe e buscar sua aprovação. Sim, faço isso. Digo mais, faço e gosto. Sinto-me protegida da responsabilidade de pensar. Não preciso me arriscar e não preciso me proteger. Ele decide por mim. Sinto-me aliviada diante desse mundo complicado, que parece uma selva de disputa de poder. Não tenho vontade, mas tenho paz. Isso é o mais importante.
(Depoimento anônimo de uma das assinantes da Revista Femme Fatale - 24/05/98)

domingo, 9 de novembro de 2008

Quando cresci descobri que não era menino
e cresci mais um pouco para virar mulher
Não demorou muito e já controlava a mulher que havia em mim
E mais, com ela aprendi a controlar o mundo a minha volta
Daqui um tempo terei conquistado o planeta e o terei em minhas mãos
Por enquanto jogo video-game com meu sobrinho e arroto depois de beber coca-cola, pois tão logo o sol surja, dominarei o Mundo.

domingo, 2 de novembro de 2008

Cláudio

Cheguei em casa ainda há pouco. Estive toda a noite num jantar de negócios. Estou exausta. Escrevo enquanto Cláudio se banha. Ficou em casa preso o dia inteiro. Deixei-lhe uma porção de água e comida próxima da mesa, até onde a corrente permitiu. Amanhã lhe deixarei solto, anda se comportando bem, poderá ficar livre pela casa.Espero que não faça bagunça e não ataque a emprega. Na verdade acredito que não atacará. Não lhe deixarei uma gota de energia. Brincaremos a noite inteira, estou muito estressada e preciso relaxar. Estou passando o tempo escrevendo, mas já preparei os brinquedos para a diversão. Tenho tudo. Encerro por enquanto, meu marido vem vindo, do jeito que mandei: limpo, Cláudio e nu.

Predileta

Karla Rodrigues Gregório
Ela sorria e saltitava. Em alguns momentos parecia uma cabrita enquanto pulava feliz ao meu lado. Outras vezes era gata arisca, mostrava unhas e tudo. Brigava. Eu gostava quando era gata manhosa, miando e se aninhando em mim. Melhor ainda quando era cachorra no cio me atiçando. Cuidei dela com mel e leite. Adestrei. Já conhecia seu dono e atendia ao chamado de minha voz. Farejava-me e caçava, cadela no cio. Encontrava-me, mostrava unhas e me lanhava, vingança da saudade. Depois manhosa, aninhava-se no meu colo. Na hora de partir, saltitava cabrita de felicidade. Não satisfeito, quis cuidar de mais bichos, de espécies únicas e variadas. Sou criador de galinhas, perito, adoro. Mas cuido de cobras, sague-suga e piranhas também. Posso com todas, todas essas espécies. No entanto perdi a Predileta, minha cabra-gata-cadela. Sem tempo de cuidar dela, minha namorada encontrou um novo dono.

sábado, 25 de outubro de 2008

VALOR E PODER: duas armas contra a violência à mulher

Karla Rodrigues Gregório


A violência contra a mulher consiste no dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico, a partir da diferença de gênero. Ou seja, a violência contra a mulher não se constitui apenas daquela explícita. Há violência implícita nos vieses e recônditos do cotidiano feminino.
Seja no âmbito doméstico ou profissional, a violência contra a mulher se faz presente. Em casa, além daquela que é física, existe a psicológica. Através do assédio moral, o cônjuge ou parceiro, acreditando gozar de direito, “manda” em sua parceira. Gerencia-lhe desde os argumentos proferidos às vestimentas. Ela não tem voz própria, nem direito à opinião.
Já no trabalho, em casos comuns, uma mulher ocupando o mesmo cargo que um colega do gênero oposto recebe menos proventos. Entretanto, já que designada ao cargo, fica ratificado que possui a mesma ou maior capacidade para exercer a função.
Essas diferenças no tratamento do ser feminino são amplamente nocivas. Não somente constituem injustiça contra a mulher, mas violência implícita, velada, também, conforme os dois exemplos acima.
Através de seu parceiro ou empregador, a mulher é exposta no dia-a-dia à informação equivocada que seu valor é menor ou nulo em relação ao do gênero oposto. Isso incute nela submissão à voz masculina. Ele é quem tem valor, acredita. Silenciada a sua voz nos recônditos do seu cotidiano doméstico ou profissional, ela entra num ciclo em que sua submissão aprendida legitima a opressão do outro.
Uma via profícua para dirimir toda violência contra mulher é conscientizar a todas e cada uma delas sobre seu valor e poder. Quando toda mulher tomar posse dessas duas verdades inerentes ao seu ser, as medidas paliativas serão menos necessárias. Elas saberão se defender sozinhas.

Abri mão

Abri mão dos meus sonhos e das minhas idealizações infantis. Fechei a porta do meu mundo encantado onde pensamentos e divagações se pretendiam (re)produção fiel da realidade.
Joguei fora as canções de ninar que embalaram meu cochilo no regaço do lar.
Disse adeus a papai e mamãe que eu mantive unidos na imaginação.
Fiz as pazes com minha irmã, aquela que nasceu comigo e mora em mim, pois ela também sou eu.
Passei a me ver no espelho, tal como sou. Não mais menina, mulher. Assumi os riscos de viver uma vida adulta, com responsabilidades, medos e possíveis frustrações. E com isso, o prazer inestimável das grandes realizações.
Abri mão por mim e para mim, mas sabendo que assim serei real e de carne e o osso para o outro. Assim serei eu.

segunda-feira, 20 de outubro de 2008

Carta a Don Juan

Saudações, meu caro amigo Don Juan.

Não sei os pormenores de sua vida, devido a sua postura reservada. Tampouco tenho conhecimento de seus negócios e empreendimentos durante o tempo em que esteve por aqui. Tenho conhecimento que é um exímio jogador de cartas e um amante das bebidas fortes, algo que temos em comum.
No entanto, percebo que passou despercebida aos meus olhos a mais significativa de suas habilidades: amar mulheres. Estou cometendo algum juízo equivocado? Diga-me, amigo, se for este o caso. Senão, prossigo.

Antes de sua saída não tinha notado essa aptidão sua. Agora percebo e sinto isso, já que há uma nostalgia no ar de Vila Santa Verônica desde sua partida.
As mulheres, nossas mulheres, já não são as mesmas. Seus olhares não são os mesmos desde que a nau Guilhermina se pôs em alto-mar levando-te Atlântico além. Vivem lânguidas e inexpressivas. As vestimentas das jovens não estão mais coloridas. Nem brilham mais seus lábios. Seus cabelos ficam desaprumados à revelia do vento durante todo o dia. As senhoras, elas já não cantam à beira do rio enquanto labutam suas tarefas domésticas. Por isso não encantam sequer os vendedores vindos dos mais pobres vilarejos. Seus semblantes estão curtidos. Envelheceram cinco anos em um mês, desde sua partida.

Particularmente, confesso, adoraria consolá-las. Abriria mão de minha fidelidade estrita a minha amada Carolina das Flores. Contudo, amigo meu, não me dão oportunidade de aproximação seque. Não dão oportunidade a ninguém. Já não têm olhos para homem algum. Não se sentem lisonjeadas com galanteios e cortejos de mais nobres partidos da redondeza. As senhoritas, ao que me parece, estão fadadas ao convento, e as senhoras ao divórcio.

Caríssimo, não desejo parecer-te impertinente, sabe que não gozávamos de muito estreita amizade. Mas, em nome da admiração que já nutria por ti e tu bem o sabes que agora ainda mais, diga-me o que fizestes a estas mulheres? O que tu tens? O que dizias e fazias a elas? Que acontecimentos se passaram embaixo de meus olhos sem que os pudesse ver?

Nas tabernas próximas ao cais não se comenta outro assunto. Todos os homens estão em polvorosos, preocupados, alguns mesmo zangados... Ninguém oferece resposta para tal mistério. Eu, o mais audacioso de todos, resolvi procurar-te para esclarecer contigo os acontecimentos que envolvem as mulheres e você, meu amigo, neste vilarejo.

Saúdo-te,
Luiz Antônio das Couves.

domingo, 19 de outubro de 2008

PÁSSARO ENCANTADO (Rubem Alves)

Era uma vez uma menina que tinha como seu melhor amigo, um Pássaro Encantado. Ele era encantado por duas razões:
Primeiro porque ele não vivia em gaiolas. Vivia solto. Vinha quando queria. Vinha porque amava.
Segundo, porque sempre que voltava suas penas tinham cores diferentes, as cores dos lugares por onde tinha voado.
Certa vez voltou com penas imaculadamente brancas, e ele contou estórias de montanhas cobertas de neve. Outra vez suas penas estavam vermelhas, e ele contou estórias de desertos incendiados pelo sol. Era grande a felicidade quando estavam juntos. Mas sempre chegava o momento quando o pássaro dizia: "Tenho de partir."
A menina chorava e implorava: "Por favor não vá fico tão triste. Terei saudades e vou chorar..."
"Eu também terei saudades", dizia o pássaro. "Eu também vou chorar. Mas vou lhe contar um segredo: eu só sou encantado por causa da saudade que faz com que as minhas penas fiquem bonitas. Se eu não for não haverá saudade. E eu deixarei de ser o Pássaro Encantado e você deixará de me amar."
E partia. A menina sozinha, chorava. E foi numa noite de saudade que ela teve a idéia: "Se o Pássaro não puder partir, ele ficará. Se ele ficar, seremos felizes para sempre. E para ele não partir basta que eu o prenda numa gaiola."
Assim aconteceu. A menina comprou uma gaiola de prata, a mais linda.
Quando o pássaro voltou eles se abraçaram, ele contou estórias e adormeceu.
A menina, aproveitando-se do seu sono, o engaiolou. Quando o pássaro acordou ele deu um grito de dor.
"Ah! Menina...que é isso que você fez? Quebrou-se o encanto. Minhas penas ficarão feias e eu me esquecerei das estórias. Sem a saudade o amor irá embora..."
A menina não acreditou. Pensou que ele acabaria por acostumar.
Mas não foi isso que aconteceu. Caíram suas plumas e o penacho. Os vermelhos, os verdes e os azuis das penas transformaram-se num cinzento triste. E veio o silêncio: deixou de cantar. Também a menina se entristeceu.
Não era aquele o pássaro que ela amava. E de noite chorava pensando naquilo que havia feito com seu amigo...
Até que não mais agüentou. Abriu a porta da gaiola. "Pode ir, Pássaro", ela disse." Volte quando você quiser..."
"Obrigado, menina", disse o Pássaro. "Irei e voltarei quando ficar encantado de novo. E você sabe: ficarei encantado de novo, quando a saudade voltar dentro de mim e dentro de você!

(Aprendizagem, predicativo para viver)

Hum... estou aqui no meu escritório. Tenho um cigarro nas mãos, e cinza no peito. Vou dizer o que aconteceu:
Ela acordou um dia e entendeu tudo: ele era pleno de si, prescendia de todos, e nisso residia sua força. Paula compreendeu claramente. Ele tinha a força que ela desejava ter, no entanto tímida era sua coragem.
Para ser honesto, posso dizer que ela já gozava dessa força e foi isso que a fez se aproximar dele. Os fortes se atraem.
Não sei se ele, Ricardo, sabe disso. Eu sei. Eles se atraíram pela força incontida que se agita em seus interiores. Força única de mesma substância e natureza.
Ele conhece sua própria força, ele conhece também a dela, mais que ela própria. No entanto, um dia ela acordou e descobriu. Descobriu pela experiência que não precisava de nada. Constatou que, assim como ele, podia escolher as pessoas de seu convívio, e já o fazia. Ela foi além, se permitiu mais.
Sentiu sua força se agitar em seu interior, sentiu seu corpo como sendo ela própria, o templo de sua alma. Percebeu que não era mais duas. Era única e realizada. Sentiu sua força e viu sua coragem dissipando medo e receio que permearam sua existência.
Quando vi toda essa sua conquista, senti grande orgulho. E constatei que já não precisaria mais de mim.
Brotou-me, homem forte, esclarecido e resolvido, incômoda nostalgia e tristeza. Eu queria fazê-la forte, mulher, vulcão. Consegui. Entretanto, agora se fez hora de partir. Semeei consciente que cuidava de um jardim do qual não colheria flores ou frutos. Tarefa cumprida. Os méritos mais nobres são dela. Ela chegou onde queria chegar, onde devia chegar. Continuará, não irá parar. E já poderá ir sozinha. Descobriu ter tudo de que precisa para sobreviver. Os mais fortes sempre sobrevivem.
Talvez ela vá acompanhada, talvez não. Isso não me importa. Aff! Sinto um resquíssio de dor despontar em mim. Sinto ciúmes dela, minha Paula, meu vulcão... Estou em carne viva, flamejando por me ter banhado em sua lava. Estou feliz.
Confesso, num momento do aprendizado quis interromper e tê-la ali somente para mim. Essa foi uma grande tentação. Se eu fizesse isso, no entanto, se interrompesse o aprendizado dela para mantê-la comigo, não teria mais razão senti-la em meus braços. Sufocaria, com isso, seu suspiro puro e intenso. Atrofiaria suas asas. Livre, ela está feliz e plena. Isso é o importante.
Se fez mulher, embora tenha se esforçado muito tempo para ser uma menina. É mulher feita e formada, que pode escolher, como o vento, aonde soprar. Assim como o Pássaro Encantado* precisou estar livre para viver. Como ele, suas penas continuarão a brilhar coloridas e quem sabe voltará para pousar breve em meus braços algum dia.
Minha pequena, garotinha e menina, virou mulher. Não sei o que fazer agora...
Hum, tive uma idéia... Vou parar de ficar divagando igual a um retardado. Vou ligar para Letícia. Convidá-la para um chopp. Talvez depois de uns choppinnhos role um sexo gostoso. Esta mulher é um tesão!
*O Pássaro Encantado é personagem da literatura de Rubem Alves. O pássaro era encantado porque não vivia em gaiola, vivia solto, vinha quando queria e porque amava. Tinha as penas coloridas com cores diferentes, cores dos lugares por onde tinha voado. Contava histórias dos lugares para sua amiga, uma menina, que decidiu prendê-lo numa gaiola a fim de tê-lo sempre perto de si para que fossem felizes juntos e para sempre. Com isso, o pássaro perdeu suas penas, esqueceu suas histórias e ficou de cor cinza. Foi quando a menina percebeu o mal que lhe tinha causado e o libertou de sua prisão.

Passamos por momentos de angústias, angústias de vida com razão ou sem motivo aparente. Nosso coração fica pesado e um nó se instala na garganta. Procuramos razões para justificar tal angústia, caçamos um culpado para o mal que nos atinge e que a principio não tem explicação. Com isso progetamos esse desconforto em algo que não necessariamente o provocou: à família, ao trabalho, ao amigo, à namorada. Tentamos entender o que se passa conosco nos mínimos detalhes e nos equivocamos.
Isso se deve ao simples fato que não gostamos de nos deparar com o nosso desespero humano. Digo isso numa linguagem acessível, tendo em consideração o pensamento do filósofo existencialista Kierkgaard. Contudo trago para participar dessa (digressão) alguém caro e especial: Henri Nouwen, um pensador que não raro se faz oráculo divino no meu dia-a-dia.
No que tange angústia, desespero e desconforto no coração, Nouwen nos prescreve: busque a solidão do seu coração. Não busque no outro o alívio do mal estar que é seu. Através desse mesmo mal estar, na solidão do seu coração, você tem oportunidade de encontrar Deus, estar pleno nele e não sufocar aqueles que estão em sua volta.



É na solidão do nosso coração que encontramos abrigo e acolhimento. Ser humano algum no mundo pode nos oferecer isso plenamente.
A busca por respostas, a busca quando incessante, desenfreada e impulsiva, apenas nos afasta do único lugar onde devemos estar: em nós mesmos. O medo do confronto com os medos e aflições interiores faz que tentemos fugir de nós mesmos, fugir do encontro com a fonte verdadeira de nossas dores e aflições. Essa fuga nos encaminha cegamente a paliativos que nos iludem quanto a solução de nossa angústia e somente a aumenta. Isso desdobra em problemas no cotidiano, pois nos frustramos com o outro, com nosso próximo, com nosso conjuge, amigo ou irmão. Se não pararmos para dar ouvidos à voz de nossos corações, não entenderemos que a confusão e os problemas externos são reflexos de conjunturas íntimas, que devem se tratadas com carinho e cuidado, por nós mesmos. Nesse espaço de solidão, solidão que não é negativa, é positiva e necessária, nos deparamos com nossos fantasmas. E são momentos como esses favoráveis à manifestação divina, ao encontro com o Outro Supremo, o Criador, o Pai, o Consolador, Amigo Fiel. São nesses momentos que ouvimos a voz do Espírito Santo e sentimos sua proteção. É exatamente nesse momento de fraqueza e inquietação que podemos suplantar nossas limitações e caminhamos um passo a mais em direção a plenitude de vida, perfeição.



Portanto, não fuja de si, de sua angústia, de seu medo. Convide ele para sentar-se e confronte, dê a si oportunidade de enxergar a força que possui, e se em algum momento a sua for insuficiente, confie em Deus que não desampara um sequer de seus pequeninos.



Paz, amém.

Livrai-nos do mal

Hoje acordei e saí de bicicleta. Era cedo, fui percorrer a comunidade num dia cinza nublado. Começou a cair uma chuva fina.
Passei por muito lugares presentes na lembrança. Em frente à igreja onde faria primeira comunhão voltei no tempo por instantes, então adentrei seu pátio. Desci da bicicleta e me sentei na bancada na lateral do antigo templo. Podia dali ver o cruzamento por onde passavam pessoas, carros, reflexões e lembranças. Notei na bancada um pequeno caracol se movimentando, carregando sua casa. Pensei em mim, no caracol e na vida minúscula que não enxergamos a olho nu, mas está em toda a parte.
Tavez para aquele caracol eu era um Deus, ali ao seu lado. Maior, onipotente, do qual ele não podia chegar ao conhecimento pleno.
O sacristão passou e me cumprimentou com um bom dia, ao que respondi. Continuei a pensar e quando vi eu rezava a oração do Pai Nosso. Em sua última cláusula percebi que pedia "livra-nos do mal, livre-nas do mal, livre-o do mal, livre a todos nós do mal, amém". O único pensamento que tive de "mal" foi o que podemos fazer uns aos outros em intenção. Esta é a maldade suprema pois não há intenção, não há culpa ou culpados. Este é o mal do qual não podemos nos livrar por conta própria. Por isso devemos rogar a Deus por sua ajuda. E quando pedi que nos livrasse a todos do mal, pedia do mal que somos capazes de fazer sem intenção. Repito: é desse mal que somos incompetentes de nos desvencilhar.
Nisso se aproximava um senhor com a liturgia da missa em mãos. Olhou-me e estendeu-me sua mão. Retribuí-lhe o gesto e o cumprimentei. Ele continuou seu caminho. Quando notei, ele iria se sentar na mesma bancada. Num reflexo instantâneo chamei: "moço, não!" Estiquei o braço e o empurrei com uma das mãos.
Por pouco, aquele senhor sentaria sobre o caracol. Talvez o matasse, certamente o machucaria, sem intenção. Houve ali, entretanto, uma teofania*. Deus livrou aquele homem do mal. Livrou ambos, o homem e o caracol.

*Teofania é um conceito de cunho teológico que significa a manifestação de Deus em algum lugar, coisa ou pessoa. (http://pt.wikipedia.org/wiki/Teofania)

sábado, 18 de outubro de 2008

Mesmo sem motivo para escrever
Sem ter o que falar
Não entendo o que eu sinto; eu vou dizer
Aquilo que me faz parar

Quando olho, não quero ver
Mesmo sem saber, não dá para acreditar
É verdade o que sinto por você
Ou será mera ilusão criada para sonhar?

De verdade quero este amor? Prefiro eu que ele venha acabar?
É difícil isso saber. Muito difícil interpretar

Vou continuar a sofrer? Por que a ser feliz não quero me habituar
Luto com o que sinto e ainda luto por você
Luto por algo que não imagino o que será

Minha voz, meu corpo, minha alma querem você
Minha mente, de ti se separar
Como pode esta luta? Quem irá vencer?
Estarei por perto ou irei me afastar?

Mulher que sou, maluca que sei
Amo-te e não quero essa realidade vivenciar
Segura estou longe de ti, não quero a isso ceder
Prefiro a segura solidão à incerteza de amar

Não findo por aqui, há mais o que dizer
Não encontro palavras certas para dissertar
Faço perguntas às quais não posso responder
Cheguei à conclusão, opto por continuar...

terça-feira, 14 de outubro de 2008

SEM TEMPO PARA DIVAGAR
SEM ENERGIA
SEM INSPIRAÇÃO
VAZIA
AFF... : (

domingo, 12 de outubro de 2008

Biografia

Aceitar aceitando Aceitar Aceitar

Minha biografia
Minha vida

Estou aqui com um vazio grande no peito
Ouço uma canção de amor e sofro a minha dor
Sofro alegre a dor de amar
A dor de desejar
A dor de oferecer liberdade ao ser que de mim é enamorado
Dor de sermos dois, quando eu gostaria que fôssemos um

Pergunto para mim e para Deus
Pergunto para Deus, pergunto para o mundo: Por que?
E não há resposta.
Sinto o silêncio da canção tocar meu rosto
Ouço minhas lágrimas escorrendo no coração

Ouço minha razão dizer serenamente: calma, vai ficar tudo bem. eu cuido de você.
Aí lembro que tudo que eu preciso, eu tenho. E que sou o bem mais importante da minha vida. E que sou amada e que amo a despeito de qualquer circunstância. Amo poder ver quem amo livre, livre, livre para voar. E regozijo ao saber que ele goza de uma liberdade que sempre almejei ter, e que ainda não tive coragem de exercer.

E também lembro que de tudo, ficarão as melhores lembranças: seu lábios de frigideira, seus olhos esbuticados, seu jeito sem jeito de dançar.

Mas ainda eu choro, choro, choro. Meu coração dói, dói. Dói.
Faço catarse através do grito e me liberto na escrita. Escrevo, escrevo com dor e alegria. Alegria de ser mulher, dor de ser mulher, alegria de amar, dor de amar. Mas sei que tudo valeu a pena, cada lágrima, cada sorriso, cada beijo, cada conversa, cada telefonema, cada birra. Tudo, tudo e tudo valeu a pena. Ser protegida, beijada, tocada por um outro assim como eu: perdido no breu, tateando no escuro, buscando o caminho, o melhor para viver.

Obrigada, Senhor.

sábado, 4 de outubro de 2008

A busca

Ele nunca tinha feito qualquer promessa. Jamais disse para sempre, e nunca se ausentou. Estava ali para tudo, todos os momentos, sendo o berço onde Diana podia ninar. Ele era seu protetor, seu anjo da guarda, manta nas noites de frio. Ela isso não sabia. Demorou para perceber. Ele era quem ela queria, tinha tudo que ela precisava. Sempre o teria. Ele era a segurança de deitar e ter bons sonhos, sem pesadelos, sem dores. Embora soubesse: a realidade traria sonhos ruins. Ele ali para abraçá-la nos momentos de terror. Sempre esteve. Diana Fênix demorou, mas percebeu que procurou em lugares errados, pessoas erradas, definições erradas. Ele sempre ali de seu lado aceitando seu delírios, aventuras e divagações. Cúmplice, compassivo, irmão, amigo... Ela se levantou imediatamente e correu para o telefone, pois precisava dizer-lhe tudo que acabara de descobrir sobre os dois. Era ele o amante que buscava encontrar em homens sem alma, em lugares sem amor. Ele atendeu o telefone, ela chorou... chorou e chorou...

quinta-feira, 2 de outubro de 2008

APoLo e DiOníSio

Ela queria nascer e ele queria vê-la
A outra não gostava da idéia, mas pouco pôde fazer
Ele sabia o segredo da assumpção e fez com que ela surgisse
Ela surgiu com sutil sagacidade
A outra não quis saber, concedeu o espaço que ela precisava
Ela chegou nem tímida nem ousada, chegou e se apropriou de um espaço que sempre foi seu
Chegou e não iria mais embora pois aquela era sua casa
A outra não se portou como anfitriã
Não sabia como se comportar
Permitiu que ela estivesse ali
Como se ela fosse a outra, a própria
E a verdade é que era,
Uma, duas mulheres
Apolo e Dionísio
Vivendo lado a lado

quinta-feira, 25 de setembro de 2008

Confissão

Se eu soubesse que iria morrer hoje, confessaria o meu egoísmo. Confessaria quem sou, sem circunlóquios. Diria o que agora vou dizer.

Não me importa quem você é, o que me importa sou eu. O que importa é que você aprecia o que sou e o que eu produzo, massageando meu ego.
Não me importo com a dor alheia, com a sua dor, desde que essa dor não seja em mim. E mesmo para minha dor eu não ligo, pois a dor é também faceta da vida. Vivo o presente, estou fadada aqui viver até morrer. Não me preocupo com a morte, com os que partiram, nem com nada disso. Não estou preocupada com sua opinião, pois ela não interfere em quem sou. Não sou o que você deseja, não estou interessada em agradar você. Pense o que quiser.
Meu egoísmo faz com que eu gire em torno de mim, fica por perto quem me entreter. Gosto de brincar com a vida, com as pessoas, com o mundo, se isso faz mal a alguém não ligo. Não volto atrás, não tenho arrependimento por isso.
Odeio os idiotas, os falsos, os burros, hipócritas, os fracos, os indecisos, os débeis, os sem juízo, os que não têm razão e ignoram os "porquês", odeio os estúpidos, odeio os medíocres, os bostas, os básicos, os mesquinhos, os falaciosos, pretensiosos, que falam e nada são. Odeio os que são coca-cola. Odeio gente feia, odeio gente porca, gente preguiçosa, gente subserviente. Odeio gente incopetente. Odeio quem vive doente, chora miséria, e vive de compaixão. São os sentimentos dos fracos, perdedores, os nerds. Os que não são ninguém, podem ter o mundo, nunca alguém serão. Vivem nos guetos, nas sombras, nas trevas, vivem nos subúrbios, nos sótãos, cavernas, vivem nos lixos, no breu, não têm chão. Vivem da fome, se alimentam da miséria, não material, não têm alma, não têm bem espiritual. Choram sem lágrimas, reclamam de tudo, pode nunca chover mas nunca enxergam o sol. Nada em suas vidas brilha, sempre na escuridão. Odeio os fracos, os pobres de alma, que não se conhecem, não se possuem. São alienados, não têm paz e nem fazem guerra, vivem apáticos, se rastejam ao chão. Não tenho paciência com esse tipo de gente, se amanhã eu morresse diria até mais. Não sou cruel, sou realista, um ser humano forte, feito no amor, para a guerra e para a paz.
Prefiro me enganar no caminho do auto-conhecimento
Prefiro não saber quem eu sou
Prefiro me exergar menina
Quando a vida grande mulher me formou

Prefiro não falar em prosa
Na poesia posso me anuviar
Não quero por ti ser vista
Quem sabe te permita aí passar

Não quero está presa aqui
Não quero nada além de mim
Sequer quero um lar
Quero a liberdade da rua, quero a liberdade sem par

Mas isso não é coisa de menina
Menina de verdade o que quer é casar
Marido, filhinhos, brincar na cozinha
Ser moça de família, doméstica cuidar

Sei mais não ser menininha
Também sei não se vou me casar
Temo que homem algum nesse mundo
Minha enorme grandeza possa suportar

Sou mulher sou forte sou rainha
Nem Cleópatra, Afrodite ou Agar
Sou mulher, mulher completa, mulher divina
Sou mulher que vive do prazer e para amar

Mulher como eu, não sei quantas existem na vida
Às vezes me sinto sozinha no mundo a vagar
Não sou homem, não sou mulher como todas
Temo o que sou, sou muita mulher mais do que possa suportar

Mulher livre, grande e cheia de vida
Temo a mulher que dentro algumas vezes
Ao meu ouvido está a gritar
Ela quer sair e viver no mundo, dele desfrutar

Cresço. Chegará o momento que ela sairá
Não serei eu, e não será apenas ela
Seremos duas numa só a existir
Não sou como quero, nem como gostaria
Cansei de lutar, de simular, fingir

Venha o que vier
Seja o que tiver de ser
Sou mulher, fui menina, não sou homem e sou forte
Preciso me aceitar desse mesmo jeito, assim

Não tenho lei, não tenho limites ou regras a seguir
Sigo minha vontade e meu bem querer
Nada no mundo me pode impedir

Amo o que sou, amo o meu ser
Seja forte meu bem se quiser ficar por aqui
Sou um furacão, sou muito forte
Seja mais forte e me terás inteira para ti

Não pisque, não peque, não há perdão,
Apenas vingança, isso sim
Olhe nos meus olhos e diga a verdade
Não mintas, te arrependerás se mentir

Amo com a alma, a vida e força que abrigo em mim
Amor se transforma em ódio, nunca se esqueça
Vingança de mulher é traiçoeira, se vinga olhando, mata amando
E de seu veneno não terá como escapolir

domingo, 21 de setembro de 2008

Amizade Virtual

Não me deixe sozinha nesta tarde quente de agosto de 2008
Nunca haverá uma tarde como esta novamente
E não quero vivenciá-la na solidão do meu ser
Não, não quero
Preciso de você aqui nesse espaço virtual
Presente e ausente
Através da Conexão banda larga
O que seria de mim, oh amigo meu, se não fosse a internet
Para encurtar o espaço que nos separa
Que nos distancia
Não me deixe, imploro-te irmão meu
Não te afaste de mim
Não me responda com teu silêncio incognoscível
Fique aqui
Através deste duro teclado posso contigo me comunicar
Embora o mouse não funcione muito bem, conheço teclas de atalho
Para essa linda e sincera mensagem enviar
Não te afaste, nem por um minuto
Nem enquanto vais ao corredor fofocar da vida alheia
Não, não vá embora
Já chega as duras horas que nos separam
O fim de sexta-feira é um suplício, não terei teus e-mails a ler
Durante todo o final de semana...
Então continue on line comigo
A não ser que seu chefe esteja por perto, não me deixe só
Não, não me deixe
Nem para o intervalo do café...

Ass. Amiga virtual seg à sex das 8 às 17h

Equívoco

Um dia estava passeando na Lagoa. Sentei-me ao lado de um jovem, de aproximadamente mesma idade que a minha, sem perceber. A princípio também não tinha notado, mas líamos o mesmo livro. Quando percebemos já estávamos conversando mais de uma hora sem sabermos o nome do outro. Naquela tarde teve início uma relação como nunca tive antes. Encontrei nele o que procurava. Era ele quem me acompanharia no trajeto de minha vida, estava certa. Sentíamos uma forte ligação além do que era passível de explicação. Contudo as coisas mudaram. Algum tempo passou e as coisas já não eram como antes. Nossa congruência se perdia em meio nossas particularidades e prioridades instrisigíveis. Nossa paixão e nosso querer bem ficou perdido no cotidiano de nossas vidas que não tinham paralelo; os pontos em comum estavam se extinguindo cada vez mais. Aos poucos vi nuvens se dissiparem com a realidade trazendo meus pés para o chão. Eu estava enganada, me equivoquei, aquele início não era o princípio de uma estação inteira de amor, apenas uma ventania passageira de paixão.

Carta


Um dia Lara resolveu escrever uma carta para um rapaz de quem ela gostava. Ela se percebia complicada, mas ele era capaz de compreendê-la, então não exitou e escreveu para ele a carta sob o título "As mulheres que moram em mim..." para com ele compartilhar das contradições que abrigava em si. Essa carta nunca foi entregue pois Lara não chegou ao lugar combinado para entregar pessoalmente a carta ao tal rapaz. Nada se sabe dele. Lara sumiu. A carta foi encontrada num banco de estação ferroviária junto a um lenço úmido supostamente por lágrimas da jovem. A pessoa que encontrou a carta, a devolveu no endereço de remetente. A família de Lara passou anos a procurá-la sem sucesso. Posteriormente, diversas explicações foram criadas para seu sumiço. Lara teria fugido com seu amado para as ilhas Cayaman; ou então teria no caminho do encontro se apaixonado e fugido com um traficante de drogas de uma das favelas do Complexo da Maré; ou por fim, indo comprar cigarros - Lara não fumava - ela teria tropeçado na calçada caindo na pista, atropelada por um táxi, morrido, teria sido enterrada como indigente.
Não se sabe o real paradeiro de Lara, mas a carta revela sua personalidade complexa. Atualmente é um material acessado por cientistas das áreas humanas: psicologia, antropologia, filosofia, sexologia, teologia etc. Enfim, segue a carta transcrita:

"Ao meu amado.

As mulheres que moram em mim gostam de você... Elas gostam de modo diferente, às vezes não gostando até. Elas são muitas, são diferentes, são complicadas.
Há aquela que não gosta nem desgosta, é indiferente, e se aproveita de você, do seu corpinho masculino. Tem uma que te obedeceria de olhos vendados e tudo que você dissesse viraria dogma para ela, se não fosse a influência de outras. Uma outra adoraria dar na sua cara na hora do sexo (ela não faz amor), e não reclamaria se recebesse de volta. Te diria coisas obcenas ao ouvido, e tais coisas eu me envergonharia muito se fosse dizê-las. Ela adora quando você puxa seu cabelo...
Tem uma menina que te ama, com paixão de irmão, amigo, pureza de amor de filha a um pai. Essa é a que você já viu chorar. Ela não entende coisas do mundo e das "gentes grandes", por isso vira e mexe sofre. A maior parte do tempo ela irradia alegria pura e sincera.Tem aquela mais séria, rígida e centrada. Ela vive segundo a razão, entende tudo pelo prisma lógico e sabe resolver equações matemáticas. É sarcástica, por vezes irônica. Extremamente realista, tange o pessimismo, mas a verdade é que é cética. Sabe separar razão da emoção, mas não consegue praticar... Tem uma romântica-platônica que cria contos de fadas e quer vivenciá-los. Esta atrapalha aquela lá. Escreve coisas com coração em volta, faz birra e pirraça, não suporta ouvir não. Ama exessivamente, se doa, faz drama, chora, grita... bleh... É a mais temperamental. Quase atriz de drama mexicano, pieguisse é elogio para seu comportamento visceral... Tem aquela que não diz nada, não expressa nada, e a tudo observa. Observa a si, e suas facetas; e observa você, quem você é. E sem dizer uma palavra permanece ao seu lado mesmo quando não está por perto.
Uma dessas aí sabe que amores vêm, amores vão. E se algo tem fim é por que teve um início, e não é por isso que o mundo acaba. Coisas terminam outras começam. A vida, segundo ela, é como um grande barco, há portos em que precisam desembarcar pessoas para que outras possam subir.
Outra não quer pensar com seriedade no que a preocupa, então simula, nada está acontecendo. Prefere não dar a importância que acredita que o assunto merece.
Uma outra chora copiosamente por dentro, embora poucas lágrimas tenham rolado de sua face, sua garganta está com nó do choro não chorado.
Ainda outra deixará tudo para seguir a emoção. Tem aquela que nada diz, somente observa sendo expectadora de sua própria vida. E aquela que não liga para nada disso, acha perda de tempo a escrita desta carta.
E somada, tem aquela que administra todas as mulheres. Essa sou eu, e ela precisa de sua ajuda, pois já não aguenta gerir tantos epicentros juntos numa mesma região, seu próprio corpo. Ela precisa e quer você. Essas mulheres, suas mulheres, têm muitas reações díspares, antagônicas e paradoxais. Elas são assim.
Isso é pouco delas, elas são muitas e são mais. São variadíssimas. Todas elas sou eu. Somos nós. Todas têm algo diferente a dizer. São diferentes entre si. São eu. E elas precisam, todas, elas e eu, precisamos de você.

beijos,
Lara"

terça-feira, 16 de setembro de 2008

Cheguei em casa do trabalho. No ônibus, durante o congestionamento, a pessoa do meu lado assistia à tv através do aparelho de celular. Isso me assuntou, a menina era feia, bem intencionada, mas feia. Mas não me assustou sua aparência, mas sim o celular na tv (ou a tv no celular?)... Isso me lembrou que estou no século XXI. Na metade do seculo passado nascia a televisão. Hoje a televisão está no celular. Isso pensei em frações de segundo, enquanto me esgueirava para assistir ao desenho do Pica-pau no celular da minha vizinha de banco. Eu parecia aquelas pessoas inconveniente que ficam tentando ler o meu jornal durante o trajeto para o trabalho; eu sou chata e fecho o jornal. Receosa que a vizinha feia fosse chata, parei de olhar antes que ela desligasse a enjenhoca de alta tecnologia. Então depois de muito tempo no trânsito, desci no ponto, peguei a moto-taxi e cheguei em casa. Recebi a visita de uma amiga que contou da morte de sua sogra, e ela estava realmente penalisada. Mas como nenhum mal vem só para o mal, o namorado resolveu devido o falecimento da mãe a vender o apartamente, para não ter lembranças negativas, e comprar uma casa. Minha amiga foi convidada para ir junto: proposta de casamento moderno. Ela contou-me isso com sorriso de ponta a ponta. Não sei mais até que ponto se penalisou pela morte da falecida. (Espero que a amiga nunca leia esse texto)
Ela foi-se embora, depois de ter contado detalhes do trágico falecimento da sogra e de ter ouvido de meus dissapores afetivo-relacionais - termo rebuscado que utilizei para dizer que... exatamente, não sei dizer o que aconteceu mas aconteceu algo que não sei dizer ou explicar, mas não é nada saboroso de vivenciar.
Então fui para o MSN e tentei me relacionar virtualmente com as pessoas no intuito de despistar a ansiedade e a inquietação. Não funcionou mas coloquei a fofoca em dia com quase uma dúzia de pessoas. Não satisfeita, decidi escrever um texto sobre o que realmente estou sentindo, e para ser franca, não estou sendo sincera em nenhuma linha do que escrevi até aqui. Isto porquê é fácil falar do século 21 e suas tecnologias, da feiura da mulher e do trânsito da cidade; mais fácil é falar da vida da amiga e do falecimento da mãe de seu namorado, assim como é fácil falar o que não entende de um modo menos cogniscível ainda; difícil é retirar todas as máscaras e cada uma delas, e olhar no espelho diante de si, e olhar pela janela cada um de vocês, e olhar para dentro de si, fazer viagem por dentro e falar daquilo que realmente tem importância. É difícil dizer que há um nó do tamanho do Universo preso na garganta e que também há grito mudo ensurdecedor riscando cada corda vocal que se tem. É difícil pensar que daqui a pouco vou publicar esse texto no meu blog e que me tornarei vulnerável para aqueles que passearem por aqui. É difícil dizer do que sente no coração, do medo de perder, da dor de perder quem se ama, e saber que não pode fazer nada para não perder. Sabe também que está perdida, e que todos estão perdidos na busca de resposta para perguntas que muitos destes sequer fizeram ainda. Sabe que se encontrar é simplesmente saber criar ou memorizar as respostas certas verbalizando-nas no momento certo, convencendo aos outros que você se encontrou. Sabe que ser seguro é apenas convencer as pessoas a sua volta que você é seguro. E aprender que não importa quem você é, mas quem você parece ser. E aprende que aprender isso não te leva a lugar algum, mas muitas pessoas acreditam que sim então você acaba dando valor a isso também para o bem de sua inserção social. Sabe que você começa a refletir sobre a vida e sobre o mundo somente como fórmula de se esquivar de sua vida e de seu mundo. E saber que por estar se expondo demasiadamente terá que somar forças mais que o normal para postar esse texto para o blog. Então vou parar por aqui pois esse texto não é poesia, não é metáfora, é uma prosa intimista, o eu-lírico sou eu, então vou sair daqui antes que seja muito tarde. Ops, já é tarde, pois fui descoberta aqui no meio destas palavras, destas letra. Fui descoberta tentando me esconder perdida no meio dessas frases. Agora não tem alternativa a não ser nunca postar esse texto. Caí em mim, dentro de mim e me encontrei perdida. Não consigo retornar ao texto, não tenho forças. Também me falta vontade de me revelar mais. Vou embora...

sábado, 13 de setembro de 2008

Subiam e desciam
Nuvens de fumaça
No branco tácito do ventre
Vertigens azuis
Suspensão do ar
Asfixia ao impostar
Corrida para o lado e para frente

Sem saber para onde ir
Não sabendo se parar
Ou seguir em frente
Talvez nem disposto a sorrir
O sol e a lua brilhavam em suas costas,
passos largos, faltavam cair

Nuvens de fumaça
Voltavam
Começava agora sua vista embaçar
Não queria aquilo não queria nada
Estava confuso
Suspendia o ar

Em cada instante
O salto pulava
A cada minuto
Havia alguém para lá
Não sabia muito
Não sabia nada
Não sabia ser
Não sabia estar

O pulo alto cada vez
Mais avançava
A cada pulo mais se via
O mar
Não queria terra
Não queria água
Prescindia de tudo
Inclusive do ar

Nuvens espessas
Sua alma inundava
Águas quentes
Gelavam sua solidão
A cada pulo
Havia algo mais que amava
Amava o mundo
Sua solidão

Não era tudo
Não era nada
Não sabia ser
Também ficar
Mas queria tudo
Não querendo nada
Queria tudo
Numa vida
única alcançar

A célula

A célula nasceu
Dividiu-se
Nasceu
Dividiu-se
Morreu
Nasceu
Morreu
Sem se dividir
Morreu
Antes de nascer
Sem se dividir
Morreu
Morreu se dividindo
Nasceu dividida
Morreu nascendo
Nasceu morta
Morreu dividida
Dividida nasceu
Morreu
Nasceu
Tenho saudades de mim. Mudei e tenho saudades de mim. Saudade de quem sou ou de quem fui. Saudade do que abandonei. Saudade do que ficou para trás, e muito ficou. Muitas eu estão para trás. Eus que estarão para sempre presas no pretérito do tempo.
Saudade do que sou e não sou mais aquilo que fui. Saudades do que não queria ter sido, mas fui e por isso tenho saudade. Saudade do que não queria ter deixado de ser, mas não houve escolha. Fui você ontem, sou você hoje, serei você amanhã. Eu sou. Eu fui. Eu vou.
Tenho saudade de mim, inocência minha ter saudade. Tenho saudade de mim, tranqüilidade demais. Tenho saudade, despreocupação incontida. Tenho saudades, no olhar sublime e esperançoso para o futuro, saudade do passado. Saudade.
Saudade nostálgica, infrutífera. Saudade do senso não crítico, saudade.
Saudade...

quarta-feira, 10 de setembro de 2008

Eu só precisava dele aqui. Que estivesse do meu lado.
A única coisa que pedi: sua presença e companhia.
Este era o meu desejo.
Sempre que procurei por ele, encontrei o não, o vazio
E visitei minha solidão.
Nisso adivinhei que o fim se aproximava.
O fim daquilo que não foi e não tinha fôlego para ser.
Não sofri, me calei. Não sorri, nem chorei.
A cabeça não ergui, mesmo abaixei.
Senti.
A vida era assim.
Não havia por que chorar, ou discutir.
Já tinha ouvido disso falarem;
Comprovava, o mundo é bem assim.
Repetidamente ouvi não, palavra a que estive acostumado,
Sonoridade peculiar.
Dor do não que vinha e não passava;
O medo do vazio e o medo de sonhar.
A frustração do não que me acovarda,
Continuamente me impede de acreditar.
Não quero cometer o mesmo erro
E na indiferença viver
Nem fingir ser forte,
O amor não se pode tentar vencer

Não quero fingir que não importo
Ou que não sinto sua falta aqui
Quero revelar meu coração
Independente da dor que possa sentir

Quero ser feliz de vez
Com ousadia, intrepidez e determinação
Quero amar à revelia dos preconceitos
E precondições, idiotices que alguém fez

Quero olhar para o futuro, com certeza e determinação
Quero estar pra sempre ao seu lado no mundo
Contrariando estatísticas de separação

Quero andar na contramão
E para sempre te amar
Quero viver a pieguice
De querer contigo ficar

E causar espanto, inveja,
repulsa ou compaixão
Não importa o que os outros pensem
Ao seu lado serei livre
Mesmo que seja vivendo em prisão.

terça-feira, 9 de setembro de 2008

Cheguei em casa ainda há pouco. Estive toda a noite num jantar de negócios. Estou exausta. Escrevo enquanto Cláudio se banha. Ficou em casa preso o dia inteiro. Deixei-lhe uma porção de água e comida próxima da mesa, até onde a corrente permitiu. Amanhã lhe deixarei solto, anda se comportando bem, poderá ficar livre pela casa.
Espero que não faça bagunça e não ataque a emprega. Na verdade acredito que não atacará. Não lhe deixarei uma gota de energia. Brincaremos a noite inteira, estou muito estressada e preciso relaxar. Estou passando o tempo escrevendo, mas já preparei os brinquedos para a diversão. Tenho tudo. Encerro por enquanto, meu marido vem vindo, do jeito que mandei: Limpo, Cláudio e nu.

segunda-feira, 8 de setembro de 2008

Conforme o desejo aumenta
Melhor será se afastar
Por que o corpo anseia e quer
Com o tempo isso pode aumentar

Por isso amor e desejo são sentimentos
Difíceis de controlar
Melhor que estejam separados, pois assim
Podemos-lhes amenizar

Quando o corpo inflama
Com chama que já vem do coração
A alma solta o corpo devora
Objetivo da sedução

O fogo acende o corpo aquece
A alma implode dentro de si
O corpo emana água que brota
De duas vidas unidas ali

sábado, 6 de setembro de 2008

CITAÇÃO DE LOU ANDRÉAS-SALOMÉ

"No mais profundo de si mesmo, o nosso ser rebela-se em absoluto contra todos os limites. Os limites físicos são-nos tão insuportáveis quanto os limites do que nos é psiquicamente possível: não fazem verdadeiramente parte de nós. Circunscrevem-nos mais estreitamente do que desejaríamos."

Lou Andréas-Salomé, in citação de Stéphane Michaud, na sua obra biográfica Lou Andréas-Salomé, p. 204, Asa, Lisboa, 2002

Vulcões (Florbela Espanca)

"Tudo é frio e gelado. O gume dum punhal
Não tem a lividez sinistra da montanha
Quando a noite a inunda dum manto sem igual
De neve branca e fria onde o luar se banha.
No entanto que fogo, que lavas, a montanha

Oculta no seu seio de lividez fatal!
Tudo é quente lá dentro…e que paixão tamanha
A fria neve envolve em seu vestido ideal!
No gelo da indiferença ocultam-se as paixões

Como no gelo frio do cume da montanha
Se oculta a lava quente do seio dos vulcões…
Assim quando eu te falo alegre, friamente,

Sem um tremor de voz, mal sabes tu que estranha
Paixão palpita e ruge em mim doida e fremente!"

Florbela Espanca - Trocando olhares - 04/05/1916

Não sou dondoca

Não sou dondoca! Sou uma linda mulher de cabelos loiros, faço luzes desde os 18. E lisos, pois faço escova inteligente. Inteligente a escova é, e eu também. Sou comunicativa, sei nome de todos os artistas de Hollywood e da Globo também. Sou compreensiva, entendo meu gênero, sei o nome de todos os tratamentos contra celulite, estria e de qualquer tipo dessas desgraças. Sou inteligente sim e provo: fiz faculdade de administração na PUC. Minha mãe queria que eu tivesse um diploma. Gostei da faculdade porque fiz muitas amigas, embora não exerça já que não trabalho. Sou gostosa e casei com um milionário. Sei muito bem ser mulher. Sei para que nasci. Visto-me muito bem, isso é muito importante. Não há como sair mal vestida num Mercedez. Inviável! Gosto de ler, leio. Sou culta, meu marido precisa que eu diga a coisa certa na hora certa em seus eventos sociais. Então leio. A propósito, ele viaja muito. A princípio, eu ficava um pouco deprimida pois gosto de sua companhia. Atualmente estou acostumada: me visto e faço compras quando ele viaja. Também freqüento um SPA ótimo em Curitiba, excelentes profissionais num lugar excepcional. Assim ocupo parte do meu tempo. Também tenho a companhia da Ana Luiza, minha beagle de 3 meses, que é minha filhinha linda. Quando viajo deixo-na numa pousada fabulosa no Jardim Botânico. Isso é um pouco de mim. E como você pôde constatar, não sou dondoca. Agora preciso ir, estou atrasada para a clínica de estética! kisse, bye!

Dois homens e um amor

Um homem era o que ele era. Era um homem, e era meu. Também homem mas dele também. Éramos um desde sempre. Desde que nos olhamos, desde que nos desejamos sem sequer percebermos. E foi desde sempre que estávamos sentenciados a nos encontrar. Juntos para sempre juntos deveríamos ficar. Eu homem, ele homem. Nós dois juntos para sempre. Dois homens e um amor.
O que dizer desta noite
O que dizer deste luar
O que dizer da canção
Que impulsiona o serenar

O que dizer da minha vida
O que dizer do meu amor
O que dizer de meus sentimentos
Ávidos novamente por dor

O que dizer da minha paixão
E da minha alma que arde por viver
O que dizer do meu medo
Acordar e num certo dia te esquecer

O que dizer do que é fugaz
Daquilo que era e já deixou de ser
O que dizer sobre esse mundo
Se ainda busco me responder

O que dizer da minha procura
O que dizer se jamais encontrar
O que fazer com essa vida
Livre solta viva, plena,
Simplesmente por aqui estar

O que dizer de ti, que diante de mim se dispõe
Lanço mão, te amo e te sacio sem medo
Seguindo o compasso que a canção se nos impõe

Ilusão onírica

Ele invade meu sonho me dizendo que ainda não se foi
Vejo-o como jovem indo para sua partida de futebol
Certa vez foi um pequeno menino que abracei como uma mãe

A ilusão onírica intenta me dizer algo que não traduzi
Talvez diga que aquela paixão de outrora ainda não
está pronta para sair de mim

Há resquícios do que foi, algo que não voltará a ser
No coração há o desejo
Que o impossível pudesse acontecer

Hoje à noite o vi de perfil, ele lindo, negro, alto
minha primeira paixão
Não fitei seus olhos, medo que me descobrisse
Ainda apaixonada, sob os olhos de rejeição

Desejei que ele me procurasse
E que me falasse de seu amor
Mas dele apenas ouvi o silêncio,
Sem sua voz, a faísca da paixão
finalmente se apagou.

LOU ANDREAS -SALOMÉ: A PAIXÃO VIVA


LOU ANDREAS -SALOMÉ: A PAIXÃO VIVA(Do Livro: Os Sentidos da Paixão. Ed. Cia de Letras, 1987, págs. 359-373)Luzilá Gonçalves Ferreira

Lou Salomé: uma prática de paixão; alguém que viveu a paixão com paixão, e talvez por isso mesmo provocou, até uma idade avançada, o nascimento da paixão nos seres que encontrou em seu caminho: Rilke, Nietzsche, Paul Rée, Tausk e, ao que parece, até mesmo Wagner sucumbiram ao seu encanto e à alegria de viver que transpirava em cada um de seus gestos - e o próprio Freud não parece ter sido indiferente à graça da discípula que ele qualificou de "raio de sol'.
A paixão de Lou pela vida transparecia em seu próprio físico. Freud lhe escreveu um dia: "você tem um olhar como se fosse Natal". E a escritora Helena Klinkberg (citado por Peters): "O sol se levantava quando Lou entrava numa sala". Era um ser luminoso, transparente e lúcido, daquela lucidez talvez de que fala João Cabral de Melo Neto a respeito de Monsieur Teste: "uma lucidez que tudo via, como se à luz ou de dia". Um ser humano para quem a felicidade é condição natural e destino do homem: "dentro da felicidade eu estou em casa". E ainda: "A única perfeição é a alegria".
Essa paixão pela vida, ela a transmitia aos outros, fazendo com que as pessoas ao seu contato desenvolvessem e dessem o melhor delas próprias. O que fez alguém escrever: "Quando Lou se interessa apaixonadamente por um homem, nove meses depois este homem dá à luz um livro. Um interesse pelo outro que o leva a crescer e produzir - mesmo quando esse crescimento e essa produção implicam o sofrimento.
Pois Lou Andreas-Salomé conseguiu realizar, em seus 76 anos de vida, o que nós todos gostaríamos e deveríamos fazer sempre - e não o fazemos por descaso, indolência, medo: tornar a vida o exercício apaixonada de uma busca. Sua exploração em todos os possíveis. Isto que requer a fruição intensa e incessante de coisas e pessoas que nos cercam, de modo que o mundo exterior em nós penetre e a nós se incorpore. Pois a vida, como o dizia Rainer Maria Rilke a propósito de Rodin, "está nas pequenas coisas como nas grandes: no que é apenas visível e no que é imenso".
Antes mesmo do seu encontro com Rilke, Louise von Salomé já intuía essa verdade: desde muito cedo encontramos nela um grande apetite de aprender e de amar - e o objeto de sua atenção podia ser a psicanálise, a curtição de uma paisagem, de uma flor, de um esquilo na floresta ou de um corpo amado.
(.....) Lou escreveu vários ensaios sobre o Erotismo. O primeiro deles data de sua ligação com Rilke. Intitulado reflexões sobre o problema do amor, traz as evidentes marcas da embriaguez física e espiritual que sua autora estava vivendo. Aqui ela assinala, em páginas de um admirável lirismo, a capacidade que tem a paixão amorosa de nos abrir o caminho ao sentimento da totalidade da vida e sua faculdade de nos colocar em estado criativo. O ato amoroso "nos enche a alma inteira (...) de ilusões e de idealizações espirituais, forçando-nos o mesmo tempo a nos chocar brutalmente, sem possibilidade de se esquivar, ao dispensador de uma tal desordem; ao corpo". E Lou escreve:
"Pois, sobretudo, resulta no indivíduo uma espécie de interação ébria e exuberante das mais altas energias criadoras do seu corpo e a exaltação mais alta da alma. Enquanto nossa consciência se interessa vagamente, habitualmente, por nossa vida psíquica, como por um mundo que conhecemos mal e que controlamos ainda pior, que ao que parece forma um com ela, mas com o qual normalmente ela se entende mal - eis que se produz subitamente entre eles uma tal comunhão de enervação que todos os seus desejos, todas as suas aspirações se inflamam ao mesmo tempo."
Por essa exaltação da alma através dos sentidos, por essa impressão que o ato amoroso nos dá de haver ido muito longe, e tocado o indizível, é que ele pode influenciar e favorecer a criação, a "pátria do dizível", como escreveu Rilke. E Lou: "O Mundo da criação e do amor significa: volta ao país natal, entrada no paraíso; o a impossibilidade de criar, ou do amor morto, é, ao contrário, um exílio onde os deuses nos abandonam".
A atividade criadora se apaixona por tudo aquilo que é vida em nós, que é indício do que em nós lateja de mais secreto, e que atinge as raízes do ser. O espírito descobre forças que não possuía ou das quais não se apercebia. Pode voltar àquele estado de inocência primeira que possuiu na infância, redescobre a "novidade" das coisas, com o frescor de uma sensação primitiva: o olhar da criança sobre o mundo que descobre maravilhada; o olhar de Adão diante de Eva recém-saída de si.
Confrontado com os seus longes, o amado vê a si mesmo, e ao mundo exterior, como algo recém-criado. Por isso, às vezes a gente sai do amor como quem saiu de uma catedral, redescobrindo o mundo aqui fora com os olhos renovados. O ato amoroso, vivido em plenitude, obriga os amantes a concentrar em si mesmos tudo aquilo de que são capazes, passível de germinar com a força das plantas na primavera.
"Nesta igualdade original do corpo e do espírito e nesta consciência ingênua de um e de outro - uma criança que acredita em tudo que vê, para quem tudo se renovou, que, cheio de uma fé e de uma confiança sem limites, gostaria de gritar sua alegria ao esplendor inverossímil do mundo, e não saberia saudar de melhor modo a razão senão fazendo cabriolas diante dela... como se balbuciasse em sonho, ele tem algo a dizer sobre estes esplendores ocultos que lhe fizera, ai de nós, esquecer tantas coisas úteis e necessárias."
O ato amoroso transforma o parceiro num "conto estranho e maravilhoso". A Paixão amorosa é uma porta, diferente de todas as outras portas, "em sua arquitetura ornada de elementos ricos de sentido, em virtude de um simbolismo singular". É o caminho por excelência que nos leva a nós mesmos. Por ela "nós não somos um mundo de realidade, somos apenas o espaço e o metteur en scène de um mundo onírico, todo-poderoso, irresistível".
Assim, o amor durará enquanto os amantes forem capazes de oferecer ao outro essa entrega, que dá acesso de modo vital à capacidade de se concentrar neles mesmos, de ser um mundo para si por causa do outro.
A esta altura, a gente poderia se perguntar - não seria esta uma visão demasiado idealizada do amor? Mas Lou não se deixa embalar incondicionalmente pelo êxtase da paixão: esta grande amorosa foi também, segundo a expressão de Freud, uma "compreendedora".
Neste mesmo ensaio, ela nos lembra que no êxtase amoroso, por mais que desejemos nossa fusão com o amado, sempre somos, em última análise, remetidos a nós mesmos. A reconciliação que se fará aqui será sobretudo entre o sujeito e ele próprio, através do outro, mais do que entre o sujeito e o objeto amado.
Num ensaio sobre o erotismo, datado de 1910, e num ensaio posterior, quando Lou já se engajara definitivamente à psicanálise, intitulado Anal e Sexual, ela nos lembra que na união física "a gente não possui um ao outro por meio do corpo, mas apesar do corpo, que, como todo mundo sabe, não se identifica jamais (...) completamente com o todo da pessoa, mas aparece sempre como uma parte dela e resiste à dominação mais viva".
(....) A fusão inteira do nosso ser com o outro, por mais querido que seja, não seria desejável. É preciso que sejamos cada vez mais nós mesmos, para poder ser um mundo para o outro. A relação erótica, remetendo-nos a nós próprios, é uma ocasião de constante renovação: cada vez ela inaugura em nós um ser novo; como um ato de linguagem, cada vez que eu falo a um Tu, é um Eu diferente que fala a um novo Tu: quando digo Eu, já não sou aquela que falava há pouco. A relação erótica é, assim, nela mesma, criação. E o amor um elemento de produção: somos a cada instante outros, encontramos no outro cada vez um elemento novo, diferente, desconhecido, misterioso até - o que dá à relação erótica sua riqueza:
"só aquele que permanece inteiramente ele próprio pode, com o tempo, permanecer objeto do amor, porque só ele é capaz de simbolizar para o outro a vida, ser sentido como tal. Assim, nada há de mais inepto em amor do que se adaptar um ao outro, de se polir um contra o outro, e todo esse sistema interminável de concessões mútuas... e, quanto mais os seres chegam ao extremo do refinamento, tanto mais é funesto de se enxertar um sobre o outro, em nome do amor, de se transformar um em parasita do outro, quando cada um deles deve se enraizar robustamente em um solo particular, a fim de se tornar todo um mundo para o outro."
É preciso que a gente seja sempre, um para o outro, duas deliciosas surpresas fecundas. Aquele mundo da fábula de La Fontaine "Os dois pombos", que aconselha aos amantes: "Amantes, felizes amantes, vocês querem viajar? Que seja pelas margens próximas/Sejam um para o outro um mundo sempre belo, sempre diverso, sempre novo./ Sejam um todo um para o outro, contem por nada o resto".
E Lou analisa esta necessidade de renovação e da existência do mistério na relação amorosa:
"Pois, nos seio mesmo da paixão, nunca se deve tratar de "conhecer perfeitamente o outro": por mais que progridam neste conhecimento, a paixão restabelece constantemente entre os dois este contato fecundo que não pode se comparar a nenhuma relação de simpatia e os coloca de novo em sua relação original: a violência do espanto que cada um deles produz sobre o outro e que põe limites a toda tentativa de apreender objetivamente este parceiro. É terrível de dizer, mas , no fundo, o amante não está querendo saber "quem é" em realidade seu parceiro. Estouvado em seu egoísmo, ele se contenta de saber que o outro lhe faz um bem incompreensível... os amantes permanecem um para o outro, em última análise, um mistério."
Assim, o amor não seria um encontro, mas uma busca. Não quer dizer que chegamos, mas que estamos próximos.
Rilke perguntava-se na Primeira elegia de Duíno: "Não é tempo daqueles que amam libertar-se do objeto amado e superá-los, frementes? Assim a flecha ultrapassa a corda, para ser no vôo mais do que ela mesma". E nas cartas a um jovem poeta, em maio de 1904:
"Assim, para quem ama, o amor, por muito tempo e pela vida afora, é solidão, isolamento, cada vez mais intenso e profundo. O amor, antes de tudo, não é o que se chama entregar-se, confundir-se, unir-se a outra pessoa. (...) O amor é uma ocasião sublime para o indivíduo amadurecer, tornar-se algo por si mesmo, tornar-se um mundo para si, por causa de um outro ser: é uma grande e ilimitada exigência que se lhe faz, uma escolha e um chamado para longe."
Se o amor é uma busca, se o estudo é uma busca, a arte uma busca, a vida inteira é também busca. E o amor e a paixão são a mola dessa busca.
É preciso buscar com amor, com paixão. Amar a vida, amá-la mesmo e sobretudo quando ela chega ao fim, e o espírito e o corpo vêem limitados seu campo de ação. Nos Cadernos íntimos dos últimos anos, Lou Andreas-Salomé dá um balanço de sua vida. Em fevereiro de 1934, isto é, três anos antes de morrer, ela escreve:
"Distingue-se entre os humanos aqueles que se sentem divididos em um passado e um futuro e aqueles que vivem o presente com cada vez mais densidade, sempre mais plenitude. Os orientais acham natural insistir menos sobre a morte do que se passa do que sobre a perfeição do que se acaba, como aprofundamento da realidade. Nós, ao contrário, começamos a ver aquilo que nos chega, apenas sob o aspecto sempre mais sinistro da morte - como tudo o que se observa de um olhar exterior, logo mortífero."
E um pouco mais adiante:
"Sempre não tive a idéia fixa de que a velhice me traria muito? Em meus jovens anos escrevi em algum lugar: primeiro nós vivemos nossa juventude, em seguida nossa juventude vive em nós. Não sei bem, ainda hoje, o que eu queria dizer com isso outrora. Mas eu tinha realmente medo de não atingir a idade de viver esta experiência; eu o sabia profundamente, uma longa vida, com todas as suas dores, vale ser vivida,. Claro, o valor da vida pode nos ficar escondido pelos desgastes sofridos pela nossa carne, nosso espírito (...) do mesmo modo que a juventude mais empreendedora pode se ver entravada em sua felicidade e em seu sucesso, por um fatal concurso de circunstâncias; mas, por além das perdas, a velhice adquire muito mais que a famosa aptidão à serenidade e à lucidez: ela permite que se chegue a uma plenitude mais acabada."
A velhice pode ser, assim, uma volta àquela espécie de paz inicial e retorno do indivíduo a um estado de não-divisão, de fusão primitiva do eu para consigo mesmo, o corpo parece se acalmar relativizando-se; ...
Num ensaio de 1901, escrito aos 40 anos e intitulado A velhice e a eternidade, Lou afirmava: "O velho está liberto de todos os seus limites pessoais e escrúpulos mesquinhos. Retirado lentamente da vizinhança imediata dos outros seres vivos, ele se vê, progressivamente, reintroduzido no grande encadeamento universal".
É preciso amar a vida em todas as suas fases e amar até mesmo a morte. Aqui Eros e Thanatos se dão as mãos - são forças complementares e não contrárias. A morte é a redenção da vida individual, escreve Lou num artigo sobre o misticismo russo. Nossa morte não nos separa dos seres que amamos; ela nos entrega de modo mais completo a eles:
No dia em que eu estiver no meu leito de morte
Faísca que se apagou -,
Acaricia ainda uma vez meus cabelos
Com tua mão bem-amada
Antes que devolvam à terra
O que deve voltar à terra,
Pousa sobre minha boca que amaste
Ainda um beijo.
Mas não esqueças: no esquife estrangeiro
Eu só repouso em aparência
Porque em ti minha vida se refugiou
E agora sou toda tua [Hino à morte]
A morte desfaz, assim, a distância entre os amantes, que agora vivem um no outro, sem que o individualismo os separe. A morte não é uma partida, umas uma volta: um retorno do indivíduo àquela união primitiva com as cosias. Por isso não a devemos temer.
A grande biografia de Lou Salomé ainda não foi escrita. Mas, pelo que dela nos resta, fica uma lição final de amor pela vida, de paixão pela vida, de totalização da vida. Por isso Lou desejou ser cremada e que suas cinzas fossem jogadas no jardim de sua casa, em Gottingen: para que seu corpo pudesse se incorporar à terra e ser transformado em planta e flor.


<http://www.cefetsp.br/edu/eso/filosofia/paixaolouandreassalome.html em 06/09/2008>