segunda-feira, 1 de junho de 2009

A doméstica, o administrativo e a cigarra

Estou de férias e hoje é o primeiro dia. Mas no domingo já estava motivada. Lavei o banheiro, lavei louça e preparei comida. Hoje acordei, li um pouco de jornal, tomei café e já arrumei a cama, a penteadeira, os meus CDs. Já estava limpando a janela do quarto quando me bateu uma estranha sensação.
Eu ali removendo a poeira, dando brilho no vidro e pensando que se eu for me embrenhar por essa via nas férias, certamente me frustrarei. Passarei os trinta dias limpando - e não faltará o que limpar - quando eu ensaiar que finalizei tudo, o banheiro já estará sujo pela quarta vez, as férias terão acabado e a vida corrida continuará.
A tarefa doméstica é um ciclo que não tem fim. É necessário um ambiente limpo e confortável para se viver, mas se você se empreende somente nisso pode ter a sensação que nada fez ou que simplesmente não viveu. Esta já era a sensação que estava me movendo quando parei de limpar a janela e vim para o pc escrever.
Não é diferente o assistente administrativo das empresas. Recepcionista bilíngue na empresa que trabalho, dou assistência à supervisora administrativa. Posso dizer que nosso trabalho lá não difere muito da lida doméstica aqui. É um ciclo que não tem fim.
Quando terminamos de pagar as contas, já chegaram as novas. E novamente: ratiar, lançar no sistema, mandar para a matriz pagar. Ops, uma nota fiscal veio errada, entrar em contato com o fornecedor, pedir reemissão de NF etc. No ambiente, quando se consegue consertar o ar condicionado, os bebedouros estão sujos, e quando limpos, as moscas invadem o escritório. Quando se consegue aprovação depois de cotação com três fornecedores para dedetização das mocas, elas simplesmente desaparecem. Parece brincadeira? Não é. E pronto, problema no ar condicionado novamente. A lâmpada não acende, a parede está rachando e tem uma goteira na casa de máquinas. Tem que comprar material de escritório, os formulários estão acabando e o café que temos só dá para mais dois dias. Ahhhhhhhhh! Às vezes dá vontade de gritar. Mas aí é respirar fundo, evocar todos os mestres espirituais da história: Buda, Jesus, Gandhi, e repetir no mínimo duzentas vezes: autocontrole, autocontrole, autocontrole, autocontrole... e não grito.
Aqui em casa quando eu terminar de limpar a janela, lavar a nova louça que já se formou, e vir limpar o escritório, é provável que já seja hora do almoço. E se eu for me aventurar pela cozinha, se fará mais louça para lavar. E quando eu limpar a cozinha depois do almoço, o dia já terá acabado. Poderei olhar à minha volta e me perguntar: o que eu fiz o dia inteiro?
Às vezes no meu trabalho também me pergunto isso. Mas reparo e vejo que tudo está em dia, assimilo que o trabalho - o muito trabalho - foi realizado com sucesso. Os fornecedores não estão ligando cobrando, tem café, açúcar e formulário no estoque, a metade do pessoal está com frio, a outra com calor, as entregas foram feitas, e a ligth não veio cortar a energia - tudo em ordem. Ninguém enxerga isso.
A supervisora e a recepcionista somente são vistas quando "o ar condicionado não está funcionando", "perdi a carteirinha do plano...", "tenho uma correspondência para enviar...", "meu contracheque chegou?"...
Aqui em casa minha mãe disse que o banheiro ficou mais limpo que quando o diarista veio fazer faxina. Na empresa, o pessoal invisível do administrativo recebe $$$ para que ninguém note nossa presença ou nossa falta.
É por isso escrevo nas férias.
A escrita é um movimento de saída destes ciclos, daquilo que é ordinário para o extra-ordinário. Como diz um famoso antropólogo

"... o rotineiro é sempre equacionado ao trabalho ou a tudo aquilo que remete a obrigações e castigos... ao passo que o extra-ordinário... evoca tudo que é fora do comum [...] os dois fazem parte e constituem expressões ou reflexões de uma mesma totalidade, uma mesma coisa... são modos que a sociedade tem de exprimir-se, de atualizar-se concretamente, deixando ver a sua "alma" ou o seu coração."
(DAMATTA, Roberto. O que faz o brasil, Brasil? p.68)

Quanto ao pagamento, quem escreve pode receber de seus leitores o melhor soldo, dando-lhes a possibilidade de uma leitura prazerosa, podem deles receber gratidão e reconhecimento. Sem falar que escrevendo se investe tempo no formoso ócio, exercita-se a liberdade e se utiliza a melhor das faculdades humanas, o pensar. Vejam o que diz o lindo poema sobre a conhecida história da Formiga e da Cigarra.

"Olhe lá que essa história
Da cigarra e da formiga
É um caso mal contato
Permita o amigo que diga

Pois quem diz que não trabalha
Quem passa a vida a cantar
Não vê que o canto é trabalho
Que ajuda o mundo a mudar

Dedilhando a viola
Dia e noite, noite e dia
E cantando sem parar
O artista faz poesia

Este é o ócio criador
E a todos traz alegria
E que enche, meu senhor
Até barriga vazia
Pois se a formiga suporta
Tanto peso carregar
É que ouve o canto amigo
Da cigarra a lhe alegrar

São trabalhos diferentes
O mundo não é igual
Como nos diz o ditado
Cada um seu cada qual

Pro formigueiro existir
Feliz, risonho e contente
É preciso que a cigarra
De cantar se arrebente"
(João das Neves)

O escritor é a cigarra que canta com os dedos.

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