segunda-feira, 22 de junho de 2009

Fofo demais

Ele era um fofo. Íamos embora juntos da escola. Ele me deixava em casa. Mais tarde passava para me buscar. Jantávamos e ele me trazia de volta. Saíamos e ele me levava brincos novos. Eu cantava com a cabeça para fora abanando os braços no carro, ele fazia um CD das minhas músicas preferidas. Sem que eu esperasse, num domingo me levou para conhecer seus pais. De tudo, seus únicos erros foram: os brincos e os pais. Fácil demais. Não tinha mais desafio naquela relação. Se continuássemos em breve trocaríamos alianças no altar. Ele era bonito, moreno, inteligente, forte. Mas incrivelmente fácil demais. Fomos ao cinema, não lembro o filme. Na volta ele me perguntou: estamos namorando? Arregalei os olhos e não soube atuar. Fiquei sem saber o que dizer. Como assim? Esse é o meu papel! Querendo me usurpar? Na semana seguinte não fui a praia com ele. Quando me ligou, dei alguma desculpa. Ele me ligou alguma vez mais. Depois não insistiu. Ele era um fofo até nisso.

História para os netinhos: Patinha Feia

Muito bem, sentem-se aqui perto, crianças. Vou contar-lhes uma história.
Algum tempo atrás havia uma jovem que queria aprender a ser uma grande mulher. Mas ela não sabia como.
Ela conhecia um pouco de grandes mulheres pois já tinha visto delas em filmes, lido em livros, assistido novelas. E sabia que estava muito distante de ser quem e como ela queria.
Então tirou sua maior bolsa do armário, colocou algumas roupas, duas frutas e um biscoito e saiu mundo a fora. Ela foi aprender e procurar o que queria encontrar. O detalhe é que ela não sabia o que queria encontrar.
Ela contava com duas ajudas mágicas: uma bússula que a dirigia por onde ela tinha que ir e um relógio que a avisava a hora de partir. Era fácil o caminho desde que ela se atentasse para os objetos mágicos. Mas nem sempre a jovem obedecia a bússula e o relógio. Perdia tempo em lugares que já devia ter deixado, e ia a lugares que não precisava ir. Depois de algum tempo aprendeu a ouvir a magia. Se aproximou dos lugares e pessoas certas. Aprendeu o que queria às vezes o que precisava, e no momento exato partia. Já não ficava triste na partida, já entendia que isso era uma etapa no processo. Muitos lugares bonitos e pessoas queridas ficavam para trás. E lugares mais belos e pessoas mais interessantes surgiam a cada partida. Chegou o dia em que chegou perto de esplanada diante de um luxuoso edifício comercial. Nessa esplanada, próximo ao edifício, havia uma linda fonte. Nossa jovem subiu os degraus que davam para a fonte, quando parou assombrada com a imagem que via. Era a mulher mais linda, elegante e luxuosa que já vira em toda sua vida. Andava com leveza, traços finos, olhar firme e gracioso sob os elegantes óculos de sol. Quando percebeu, aquela mulher havia parado de caminhar. Quando a jovem foi se aproximando, notou que aquela dama também se movia à medida que ela própria andava. Foi então que percebeu que se via refletida na vidraçaria espelhada do edifício. Sorriu feliz e orgulhosa. Se virou e soube que chegara a hora...

quarta-feira, 17 de junho de 2009

Heresias II

Pondo-se eles a caminho, Jesus entrou num povoado. Uma mulher, de nome Marta, o recbeu em sua casa. Ela tinha uma irmã chamada Maria que, sentada aos pés do Senhor, escutava a sua palavra. Marta, porém, andava atarefada com o muito serviço. Parou e disse: "Senhor, não te importa que minha irmã me deixe sozinha nos serviços? Dize-lhe que me venha ajudar." O Senhor lhe respondeu: "Marta, Marta, andas muito agitada e te preocupas com muitas coisas. Entretanto, uma só coisa é necessária. Maria escolheu a melhor parte que não lhe será tirada".

Deleitar-se com a presença de quem se ama, mais que com as agitações de "como ser" ou "como fazer" as coisas do modo certo.

Heresias I

"E disse Pedro: Não tenho prata nem ouro, mas o que tenho isso te dou. Em nome de Jesus Cristo, o Nazareno, levanta-te e anda." (Atos 3:6)

Versos Simples
(Chimarruts - Composição: Cassiane Silva / Richardson Maia)

Sabe, já faz tempo
Que eu queria te falar
Das coisas que trago no peito
Saudade, já não sei se é
A palavra certa para usar
Ainda lembro do seu jeito

Não te trago ouro
Porque ele não entra no céu
E nenhuma riqueza deste mundo
Não te trago flores
Porque elas secam e caem ao chão
Te trago os meus versos simples
Mas que fiz de coração

<<http://www.youtube.com/watch?v=Fj-SkUCSf-I>>

De repente...

Eu estava apaixonada por outro cara. Ele tinha namorada. Ele era inteligente e me falava de uma liberdade de vida que me despertava os instintos. Digredia sobre o culto ao prazer, a vida livre, da liberdade e coragem de ser.
Sempre que nos cruzávamos ele me olhava de um modo que me incomodava. Com o tempo o meu olhar passou a ser como o seu. E dizia-me coisas que me faziam rir com as bochechas coradas, e olhos para o chão. De tanto ouví-las, fiquei curiosa, muito curiosa com aquele modo de ser.
Ele não era o meu tipo. Não mesmo. Branco. Mas desde o primeiro dia que o ouvi, que o vi, algo nele ressoou em mim. Era o contrário daquilo que acostumada a desejar, exceto pela forte personalidade, presença de espírito, inteligência e sagacidade.
Sem perceber estava envolvida. Sem querer, o amava. Não era amor romântico, não... isso não... Era o amor-amor. Amor sem que nem porquê. Pura admiração, curiosidade, atração, química, amizade. Amor sem dependência e sem necessidade. Poderia ter passado a vida inteira sem tê-lo e ser feliz. Entretanto optei por tomar com ele um drink, aceitei seu convite.
E antes do drink, o primeiro beijo. E no segundo drink, o primeiro aconchego. E no terceiro drink, socorro! Vou embora! Fugi, atravessei a cidade, fui para minha casa dormir.
Quando nos vimos novamente, eu: olhos arregalados, respiração presa, olá. Ele, simpático, normal, jovial. Percebeu que não era para mim, como para ele, natural. E só tinha sido o primeiro amasso. Sua ação, bom humor e atenção, aliviou-me a tensão.
E sempre que tinha oportunidade me convencia da liberdade que o ser humano pode e deve ter, e da pulsão humana, por morte, sexo e prazer. Ouvia calada, atenta, às vezes refutando alguns argumentos seus, apenas para ouvir como se sairia...
Cativou minha inteligência. Essa é a minha fraqueza. Não me importa muitas coisas, inclusive beleza. Interessa-me se há química ou há inteligência. E se há as duas em conjunto, pronto, acabou o mundo... paixão! E desta fui pega é de surpresa... ;)

sábado, 13 de junho de 2009

Quando amei

Quando amei...

Olhei para um lado, olhei para o outro, e ninguém estava vendo, amei

Lancei os olhos ao chão, minhas bochechas coraram, senti vontadade de sair correndo, mas permaneci, amei

Neguei, para mim não era amor, amei

Peguei minha bolsa, bati a porta, tomei um táxi, uma lágrima rolou, amei

Pedi perdão, baixei o olhar, reconheci que errei, desejei mais algum tempo ficar, amei

O tempo passou, aqui estou, o vento meus amores levou, amei

A solidão me namorou, meus lábios beijou, meu corpo saciou, me amou, amei

Quando ela partiu, sozinha não me deixou, me trouxe um novo amor, e também este amei

Amei com a razão, usei a emoção, deixei vacilar o coração, o corpo expulsar o tesão... saciei minha emoção, transpirei satisfação, fui amiga da razão, amei

Quando amei, eu nasci, passei a existir
Companheira e amiga, fui amante de mim

Sonhar

Quando eu sonho
Eu gosto de sonhar
Gosto de sonhar que estou voando
Adoro voar nos sonhos, sou grande, forte, vejo tudo do alto
E também adoro sonhar que estou correndo, sou valente, rápida, nada pode me deter
Às vezes sonho com perseguição, o abismo me persegue. Mas nunca caio no abismo. Nunca caio.
Às vezes sonho que estou caindo, mas minha cama sempre me salva. Ela sempre está embaixo de mim, me esperando. Eu caio nela, acordo e volto a dormir.
Mas às vezes tenho pesadelos. Quando tenho pesadelos que me deixam alterada, levanto e vou dormir com minha mãe. Primeiro tento dormir sozinha, forte, valente e corajosa que sou. Se não dá certo, passo direto para o quarto da mamãe. E lá durmo feito um anjo. Ela é como minha cama, está sempre perto quando preciso. Adoro minha cama, amo minha mãe.

Mutação II

Acordei e era noite
era cedo da manhã, era noite
E todos os dias de noite eu dormia
E acordava cedo da manhã, ainda noite
Eu dormia azul, acordava cinza
Dormia azul, acordava cinza
Acordava cinza, dormia azul
Até que num dia, acordei azul
E fiquei azul para sempre
Até que eu morra
Aí virarei cinzas de verdade

Mutação

Eu era um menino forte, que pulava muros, subia em árvores e esmurrava todo mundo. De repente, certo dia, acordei e tinha feito xixi na cama. Eu vestia uma camisola de tecido que minha mãe costurara para mim. Tirei a camisola e embaixo dela tinha uma outra roupa, uma calcinha. E dentro da calcinha.... aaaaaaaaaaaaahhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh manhêeeeeeee... Neste dia descobri que eu era menina.

quinta-feira, 11 de junho de 2009

Abri mão

Abri mão dos meus sonhos e das minhas idealizações infantis. Fechei a porta do meu mundo encantado onde pensamentos e divagações se pretendiam (re)produção fiel da realidade.
Joguei fora as canções de ninar que embalaram meu cochilo no regaço do lar.
Disse adeus a papai e mamãe que eu mantive unidos na imaginação. Fiz as pazes com minha irmã, aquela que nasceu comigo e mora em mim, pois ela também sou eu.
Passei a me ver no espelho, tal como sou. Não mais menina, mulher. Assumi os riscos de viver uma vida adulta, com responsabilidades, medos e possíveis frustrações. E com isso o prazer inestimável das grandes realizações.
Abri mão por mim e para mim, mas sabendo que assim serei real e de carne e o osso para o outro. Assim serei eu.

28/10/2008

terça-feira, 2 de junho de 2009

Homem e razão

Eu penso e você sente
Eu sou homem, você mulher
Te quero ao meu lado, símbolo do meu poder
Você me quer amar, eu simplesmente te ter
Não amo, só tenho vontade
Você, vontade de sentir
Sentir novamente meu toque, minha voz
E meu coração a pulsar em ti
Não sou quem eu gostaria de ser
Sou homem assim como você
Sou razão que não dá espaço para emoção
Irrigar meu corpo, meu coração só tem essa função
Não sei sentir
Finjo que amo, para ser igual a ti
Mas não consigo mais mentir
Então fujo do teu amor que me sufoca
E me ausento de mim
9/2/9

segunda-feira, 1 de junho de 2009

Saudades

Saudades de um menino em corpo de gigante
Com sorriso e alegria contagiante
Que para longe se foi
Sem data para retornar
Sinto saudade de seus lábios, de seu toque e olhar,

Que saudade é essa! Não queria confessar.
Mas confesso, sinto falta
Falta de alguém que não sei se irá voltar

Pouco tempo estivemos juntos
Mas o suficiente para sonhar
Não é um príncipe
É um raro gigante
E fez o meu corpo bailar
E de dançar, se extasiar

Eu - 22/11/08

O mundo não dá susto. O mundo do lado de fora é simples. Dentro, aqui dentro que é complicado. Aqui fora posso mover as coisas, algumas até posso entender. Mas aqui dentro é tudo misturado. Não tem como pegar algo e mudar de lugar, não facilmente. Dentro é confusão. Fora o Caos se tornou Cosmo. Dentro mutação, algo que não é mais e ao mesmo tempo ainda não é. Mas foi e será algo que não sei o que é. O mundo é simples e as pessoas são boas. Eu que não sou boa. Ou sou boa como todos são, sendo bons e maus. E tenho dificuldade de assumir isso. O que sou é difícil ser, pois sou isso mas não era, ou não sabia que era. Então agora tenho dificuldade para ser. Mas estou tentando e me esforçando ser quem sou.As pessoas não são perigosas. Não por si. Nada podem me fazer, a não ser que eu permita. Sou meu castelo forte e sei me proteger. Mas vejo perigo, às vezes, na fumaça que está no céu, como se fosse um incêndio. Na verdade era a chaminé duma casa onde estava sendo feito um calderão de sopa deliciosa.A cabeça prega peças. Os olhos e as emoções também. Pecado ler onde não há nada escrito. Reagir a uma ação não tomada. Vingar um sentimento não ferido. Matar sem ter motivo.Aprender é necessário. É chato quando fazemos uso de alguém, que também nos usa. Mas sequer sabemos até quando. As pessoas ensinam sem querer, às vezes. Mas chegará o dia em que vou ir embora porque já aprendi tudo que tinha para aprender com ela. Não gosto de partir. Na verdade gosto de partir, mas não gosto quando tenho vontade de ficar. Mas o meu tempo nem sempre é o tempo. Tenho amigos que estão distantes porque nosso tempo junto acabou, nosso elo, o ponto em comum. É um gostar diferente. Gostar na distância. Gostar da lembraça, lembraça de algo bom que ficou para trás.É pecado forçar a barra para estar junto quando o tempo acabou. Violentar a vida, a minha vida, quando algo mais está no horizonte me aguardando e tento segurar com toda força a brisa do passado. Forçando, me limitando quando o horizonte é tão extenso e tão lindo e tão cheio de expectativas e boas surpresas. Isso é assombroso e belo.As vezes acho isso. Isso que eu disse. Reluto muito a deixar para trás aquilo que precisa ser deixado. Em relação a tudo: pensamentos, ideais, pessoas, amigos, amores. Uma vez uma amiga de alojamento do Seminário se mudava para um outro Estado, e eu fiquei muito triste por isso. Ela me disse: Karlinha, a vida é um grande barco, e para que pessoas novas entrem, algumas antigas precisam descer.Esse fluxo é natural, achei ingrato na época, mas faz sentido e é bom. Entendo. É bom. Tento me convencer disso. Tento aceitar.A vida é tão rica e tão cheia de... vida. Pessoas, sonhos e realizações. E mais pessoas, amores, amantes, lábios e desejos num concatenado de confusões. "A vida é real e de viés..." diz Caetano Veloso. Gosto de uma pessoa, já gostei de outra e já me apaixonei diversas vezes. Desejo uma outra, sou intrigada por uma que gosta de mim e não sei o que fazer. Mas o que sei é que não posso simplesmente fugir dessa realidade, dessa confusão de coisas que estão aí. Não vivi ainda nenhum seriado de Nelson Rodrigues. Nunca li Jorge Amado, mas acredito que também não vivo qualquer de seus romances. Mas sei que muito do que há em todas as pessoas também há em mim. Desejos proibidos, vontades estranhas e esquisitas, sonhos reprimidos, sonhos desajeitados. Sou muito humana e me dar conta disso é como se eu acabasse de descobrir que existo. E que estou num mundo com bilhões de pessoas que são como eu, e não são menos que eu, não são melhores que eu. São eus diferentes de mim, mas da mesma essência, suscetíveis às mesmas vicissitudes que eu. Cotidiano, rotina, mesmice, cansaço, sonhos, pesadelos, chulé, arroto, caspa, lágrima, sorriso, orgasmo, cachaça... Sou humana, muito humana, tão humana e tão mulher. E vivo aqui nesse planeta e falo esse idioma e tenho os traços do rosto como o são e uma cabeça cheia de coisas. E isso faz com que eu me sinta a pessoa mais interessante do mundo. Faz-me sentir plena e realizada num planeta, numa Via Láctea num Universo grande, grande, muito grande.Adoro viver e ter 25 anos e descobrir que em 25 anos serei idosa. E ter expectativa de quem serei eu daqui a 25 anos. O que terei feito? Como terei vivido? O que terei conquistado? O que estarei conquistando e construindo? Qual será o meu legado para este mundo? O que deixarei para os outros eus que virão depois de mim? Isso me joga um senso de responsabilidade por mim e pelos demais. O que não diminui o prazer de estar aqui. Não diminui.Sou viva e estou aqui.Mudo por dentro. Mudo por fora. Não tenho limites. Não há limites no mundo para todo ser humano. O segredo é descobrir e se apropriar disso. E isso eu sei desde pequena. Tinha esquecido, mas relembrei. Posso tudo e o impossível não existe. A vida me diz isso desde sempre e há muito tempo. E com isso acredito timidamente que sou feliz.

A doméstica, o administrativo e a cigarra

Estou de férias e hoje é o primeiro dia. Mas no domingo já estava motivada. Lavei o banheiro, lavei louça e preparei comida. Hoje acordei, li um pouco de jornal, tomei café e já arrumei a cama, a penteadeira, os meus CDs. Já estava limpando a janela do quarto quando me bateu uma estranha sensação.
Eu ali removendo a poeira, dando brilho no vidro e pensando que se eu for me embrenhar por essa via nas férias, certamente me frustrarei. Passarei os trinta dias limpando - e não faltará o que limpar - quando eu ensaiar que finalizei tudo, o banheiro já estará sujo pela quarta vez, as férias terão acabado e a vida corrida continuará.
A tarefa doméstica é um ciclo que não tem fim. É necessário um ambiente limpo e confortável para se viver, mas se você se empreende somente nisso pode ter a sensação que nada fez ou que simplesmente não viveu. Esta já era a sensação que estava me movendo quando parei de limpar a janela e vim para o pc escrever.
Não é diferente o assistente administrativo das empresas. Recepcionista bilíngue na empresa que trabalho, dou assistência à supervisora administrativa. Posso dizer que nosso trabalho lá não difere muito da lida doméstica aqui. É um ciclo que não tem fim.
Quando terminamos de pagar as contas, já chegaram as novas. E novamente: ratiar, lançar no sistema, mandar para a matriz pagar. Ops, uma nota fiscal veio errada, entrar em contato com o fornecedor, pedir reemissão de NF etc. No ambiente, quando se consegue consertar o ar condicionado, os bebedouros estão sujos, e quando limpos, as moscas invadem o escritório. Quando se consegue aprovação depois de cotação com três fornecedores para dedetização das mocas, elas simplesmente desaparecem. Parece brincadeira? Não é. E pronto, problema no ar condicionado novamente. A lâmpada não acende, a parede está rachando e tem uma goteira na casa de máquinas. Tem que comprar material de escritório, os formulários estão acabando e o café que temos só dá para mais dois dias. Ahhhhhhhhh! Às vezes dá vontade de gritar. Mas aí é respirar fundo, evocar todos os mestres espirituais da história: Buda, Jesus, Gandhi, e repetir no mínimo duzentas vezes: autocontrole, autocontrole, autocontrole, autocontrole... e não grito.
Aqui em casa quando eu terminar de limpar a janela, lavar a nova louça que já se formou, e vir limpar o escritório, é provável que já seja hora do almoço. E se eu for me aventurar pela cozinha, se fará mais louça para lavar. E quando eu limpar a cozinha depois do almoço, o dia já terá acabado. Poderei olhar à minha volta e me perguntar: o que eu fiz o dia inteiro?
Às vezes no meu trabalho também me pergunto isso. Mas reparo e vejo que tudo está em dia, assimilo que o trabalho - o muito trabalho - foi realizado com sucesso. Os fornecedores não estão ligando cobrando, tem café, açúcar e formulário no estoque, a metade do pessoal está com frio, a outra com calor, as entregas foram feitas, e a ligth não veio cortar a energia - tudo em ordem. Ninguém enxerga isso.
A supervisora e a recepcionista somente são vistas quando "o ar condicionado não está funcionando", "perdi a carteirinha do plano...", "tenho uma correspondência para enviar...", "meu contracheque chegou?"...
Aqui em casa minha mãe disse que o banheiro ficou mais limpo que quando o diarista veio fazer faxina. Na empresa, o pessoal invisível do administrativo recebe $$$ para que ninguém note nossa presença ou nossa falta.
É por isso escrevo nas férias.
A escrita é um movimento de saída destes ciclos, daquilo que é ordinário para o extra-ordinário. Como diz um famoso antropólogo

"... o rotineiro é sempre equacionado ao trabalho ou a tudo aquilo que remete a obrigações e castigos... ao passo que o extra-ordinário... evoca tudo que é fora do comum [...] os dois fazem parte e constituem expressões ou reflexões de uma mesma totalidade, uma mesma coisa... são modos que a sociedade tem de exprimir-se, de atualizar-se concretamente, deixando ver a sua "alma" ou o seu coração."
(DAMATTA, Roberto. O que faz o brasil, Brasil? p.68)

Quanto ao pagamento, quem escreve pode receber de seus leitores o melhor soldo, dando-lhes a possibilidade de uma leitura prazerosa, podem deles receber gratidão e reconhecimento. Sem falar que escrevendo se investe tempo no formoso ócio, exercita-se a liberdade e se utiliza a melhor das faculdades humanas, o pensar. Vejam o que diz o lindo poema sobre a conhecida história da Formiga e da Cigarra.

"Olhe lá que essa história
Da cigarra e da formiga
É um caso mal contato
Permita o amigo que diga

Pois quem diz que não trabalha
Quem passa a vida a cantar
Não vê que o canto é trabalho
Que ajuda o mundo a mudar

Dedilhando a viola
Dia e noite, noite e dia
E cantando sem parar
O artista faz poesia

Este é o ócio criador
E a todos traz alegria
E que enche, meu senhor
Até barriga vazia
Pois se a formiga suporta
Tanto peso carregar
É que ouve o canto amigo
Da cigarra a lhe alegrar

São trabalhos diferentes
O mundo não é igual
Como nos diz o ditado
Cada um seu cada qual

Pro formigueiro existir
Feliz, risonho e contente
É preciso que a cigarra
De cantar se arrebente"
(João das Neves)

O escritor é a cigarra que canta com os dedos.